O problema do Brasil são os brasileiros — quem nunca ouviu essa queixa? Ela não fala das pessoas, precisamente, mas de certos hábitos seus, que melhor podem ser designados como vícios, e um deles, o mais grave na minha opinião, é a preguiça intelectual. Certa vez, ouvi de um senhor, com seus quase sessenta anos, a confissão de que não lia há muito tempo, desde a conclusão do ensino superior, se não lhe falhasse a memória. Muito bem, a lembrança do que fez, ou do que deixou de fazer, podia não lhe falhar, mas não se podia observar naquele momento, também, nenhuma outra habilidade intelectual que não fosse essa, a de não se esquecer. Mas e a leitura? E o cultivo da imaginação? E a descoberta de novas ideias? E a maturação das suas próprias no confronto com debates, ensaios, tratados, que fossem artigos de opinião em uma revista sensacionalista? Nada. Ele me assegurou que não lia nem uma página de jornal, em quase quarenta anos. Fiquei atônito: o que eu podia dizer para esse sujeito? Na hora eu desconversei, mas minha vontade era lhe dizer um sermão sobre a importância da vida intelectual. |
“O maior ganho que o estudo e a leitura podem proporcionar não é,
mesmo, dar respostas, seu lucro maior é nos apresentar às palavras que podem
expressar o nosso pensamento atual e, tanto melhor, abrir caminho para outros
novos.”
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Revelando isso, não estou insinuando
minha própria erudição nem inteligência, nem quero dar a entender que, para
mim, o melhor seria se fôssemos todos uma população de gênios artísticos e
científicos. O contrário disso é mais verdadeiro. Se há uma constatação a
fazer, no meu interesse e para o proveito geral, é a da ignorância. Eu sou
ignorante, tu és ignorante e, assim por diante, como manda a conjugação
verbal. Há ignorância o bastante para todos os pronomes pessoais em nossa
língua, desde os que existem na norma culta, até os que serão inventados
algum dia pela gíria. “Nóis naum sabemu de nada”. Não há mal algum em
reconhecer esse fato. O problema é fazer da persistência nesse estado uma
causa de orgulho. Perdi a conta de quantas vezes me dirigi às pessoas para
perguntar de um livro – de um filme, que seja — e elas me responderem “Não
sei. Não li.”, e rirem disso, como se fosse uma grande bobagem saber “dessas
coisas”. Outro problema, mais escandaloso, é maquiar essa indigência
espiritual com resumos, vídeos, palestras, ferramentas de busca na internet
e, — valha-me Deus! —, palavras e expressões genéricas que poderiam servir
para qualquer tipo de juízo, desde um comentário ao desempenho do time de
futebol a uma avaliação da obra de um artista obscuro, que só se viu de
última hora, no catálogo de exposição do museu. Se estes senhores e senhoras,
e não lhes darei o subterfúgio de um x na desinência de gênero, se não
tiveram quem lhes avisasse, aviso eu com a cumplicidade do leitor: — Esse
conhecimento superficial, seja self-service,
seja à la carte, não é
conhecimento e não é cultura.
O ponto é o hábito. Amanhã, não é necessário haver, na frente das
bibliotecas, hordas de criaturas ávidas por ter um livro. Qualquer um sabe
que, se a roupa não faz o monge, também a capa de livro não faz o sábio. Não
basta emprestar livros, não basta nem mesmo lê-los, como se fosse um processo
de passar os olhos pelas linhas e decodificar o alfabeto. O principal é
querer conhecer e fazer da sua busca uma prática diária – eis o cerne da
questão. Ir além da curiosidade preguiçosa e fofoqueira, tornar-se um
investigador, ter uma consciência.
Podemos passar pela vida sendo arrastados pelas várias
distrações, entorpecentes e preocupações materiais. De um desejo a outro,
subindo e descendo pelo corpo, do estômago para a pélvis, dos bíceps malhados
para as nádegas saculejantes, podemos facilmente ter uma vida muito
confortável, cheia de emoções, bons momentos, na mais completa e sossegada
imersão na mediocridade existencial. Mas quão perdidos nós estaríamos! Ao
lado dessa tranqüilidade quentinha e divertida, encontra-se também aquele
sofrimento sem sentido, aquela falta de respostas, aquela agitação engasgada
que não encontra as palavras. Conheço, é verdade, quem aprecie nos estudos o
aspecto questionador. Eu também gosto dele, mas não o confundo com ter inúmeras
perguntas e nenhuma resposta. O maior ganho que o estudo e a leitura podem
proporcionar não é, mesmo, dar respostas, seu lucro maior é nos apresentar às
palavras que podem expressar o nosso pensamento atual e, tanto melhor, abrir
caminho para outros novos. Se não nos servirem para encontrar a resposta,
ajudam-nos, pelo menos, a definir melhor o problema.
Para ilustrar a urgência disso, narro mais um caso que
presenciei, de relance. Na volta da faculdade, passei por uma praça, em que
dois rapazes se encontravam sentados, no banco, parecendo conversar.
Desconheço o assunto de que tratavam, não sei informar nada sobre quem eram,
mas posso transcrever isto:
—
Então, você sabe...
—
É, tô ligado. A parada é ... é isso, mano.
—
Pode crer. É que... são essas fita. E aí?
E aí, pergunto eu. Deviam ser telepatas ou espiões, falando em
um código obscuro. A terceira opção é triste demais para se admitir. Queremos
nos convencer, para apaziguar antecipadamente qualquer discussão, que tudo
bem nós não sermos fãs de leitura e estudo, como se aqui se tratasse de um
mero gosto ou passatempo. Temos de enfrentar essa realidade com coragem.
Estamos decaindo e perdendo o encanto de viver, estamos desaprendendo a
comunicar nossa vida interior e estamos mais alheios a nós próprios e aos
outros, embora nunca antes estivéssemos tão conectados. Tudo porque nossa
imaginação e nossa inteligência estão desaparecendo também. E a culpa não é
do Estado, como se a solução devesse partir dele. Precisamos acordar e fazer
algo por nós mesmos: em vez de continuar apostando que os problemas materiais
são os mais urgentes (ter o que comer, o que vestir, o que dirigir, o que
consumir), precisamos mirar o conhecimento, a sabedoria, as virtudes! Não
precisamos de um novo ídolo do show
business, nem de uma nova sensação comercial qualquer, precisamos de
recuperar a nossa alma, nossa autoconsciência, nossa voz. Precisamos de
pintores, escultores, romancistas, poetas, atores, compositores, cantores,
historiadores, teólogos, filósofos, cientistas das ciências mais imaginativas
às mais teóricas, das mais subjetivas às mais objetivas, das mais misteriosas
à mais metodológicas, que se dediquem do microcosmo do átomo à vastidão
sem medida do universo. Precisamos de vida intelectual.
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"Crucifixão", de Matthias Grünewald (1510 - 1515) Gostaria apenas de partilhar esta imagem da Paixão de Nosso Senhor. À direita vemos São João Batista apontando Jesus crucificado. Entre sua mão e sua cabeça está escrito em latim: "É necessário que Ele cresça, porém que eu diminua" - frase que o Batista disse, segundo a narração de São João, Apóstolo e Evangelista. Sob a mão indicadora de São João Batista, vemos o cordeiro abraçando uma cruz e jorrando sangue dentro do cálice. Esta é uma alusão clara ao sacrifício de Nosso Senhor, Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo e sua expressão sacramental na Santa Missa. Porém, o mais impressionante desta pintura é a retratação da dor feita por Grünewald. As mãos retorcidas de Cristo é um detalhe impactante, pois expressam um intenso sofrimento. O rosto abatido de Jesus transparece a serenidade, mas também a exaustão após sofrer tantos suplícios. Gombrich, em seu livro "História da Arte", chega a ...
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