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É mister buscar a reconciliação

Escrevi o texto abaixo logo após o fim das eleições de 2018 e publiquei-o no meu perfil do Facebook.


*   *   *

     As eleições estão decididas e, acabada a guerra de memes, eu gostaria de falar aos jovens da minha geração e aos mais jovens que votaram pela primeira vez. O assunto é reconciliação com a família, e todos devem imaginar o porquê. Nas últimas semanas, eu vi incontáveis insultos de filhos contra pais, e destes também contra seus rebentos, como se todos estivessem em um Casos de Família na versão 200 caracteres. Foi doloroso assistir a essa briga toda. Como a minha perspectiva é a do filho cabeça-dura, é com dureza que desejo me dirigir às cabeças que nasceram de outras, sem reconhecer devidamente esse fato.
     Começo com um conselho que bem poderia ter saído de nossa avó enquanto ela mexia com alguma coisa no fogão: Quanto mais tentamos rejeitar nossos pais, tanto mais nos tornamos o que supostamente odiamos neles. Esse é um daqueles fatos que nos pegam de surpresa em nossa jornada até a fase adulta, para o qual deve haver uma explicação psicológica, mas que, já adianto, desconheço. Na falta de uma teoria, pensei em uma história que nos ajude a entrever o mistério que é amadurecer e tornar-se alguém. Em resumo, imagino um anti-Narciso que, em vez de encantar-se com a própria imagem refletida na água, detesta a imagem dos outros que ele próprio projeta. Ele não se afoga na água, na tentativa vã de possuir-se, mas destrói a si mesmo, gradualmente mutilando seu rosto, seu corpo, até sua personalidade, para não se parecer com os "monstros" à sua volta. Porém, pouco antes do fim, ele se torna a criatura odiosa que tanto temia. E quando os outros fogem dele, ou quando sem reconhecê-lo atacam-no como a um ser estranho e ameaçador, este anti-Narciso se convence de que estava certo desde o início, em odiar seus juízes e agressores, em não ser como eles. A obcessão que o leva à destruição não é a busca de uma beleza que julga ver, mas é a recusa da feiúra que nunca admitiu ter.
     Vejam bem. Certamente, problemas familiares são tão antigos quanto a espécie humana. E não duvido que Caim tivesse problemas com seus pais. Devia passar horas julgando que eles foram estúpidos por perderem o Paraíso e que seu irmão era um grosseirão por passar o dia limpando a sujeira dos animais que criava. Talvez se achasse superior por ser de uma nova geração ("não fui eu que comi do fruto proibido"), talvez fizesse um alto juízo de seu trabalho apenas pelo fato de ele ter saído de suas mãos purinhas, talvez até se julgasse um livre pensador, com idéias mais avaçadas. No dia do sacrifício a Deus, deve ter cogitado: "Para que vou queimar minha lavoura neste ritual? Deus não precisa de fumaceira e posso empregar esses produtos em coisas mais úteis para mim... inclusive para a humanidade! Sim! Para a humanidade!" Contudo, depois que Caim ouviu uma recusa de Deus, que não aceitou seu sacrifício mesquinho, e viu que seu irmão grosseiro foi atendido, o que fez Caim? Educadamente ele chamou o irmão para um diálogo na floresta e de lá saiu como filho único. Eis uma lição dos primórdios.
     Como jovens, inexperientes e apaixonados por palavras, ganhamos imensamente por estarmos obrigados a conviver com pessoas que não elegemos e que vivem desafiando e desautorizando nossos arroubos de petulância. Os pais certamente poderiam facilitar nossa tarefa de ouvi-los e de obedecê-los, dando-nos o exemplo em vez de seguir o lema "Faça o que digo, não o que faço", mas, como diz o ditado, melhor isto do que nada. Se nós formos pacientes com nossos pais, ou com aqueles a quem a Providência delega essa autoridade, podemos aprender que, entre o amor incondicional que lhes devotávamos na infância e a revolta passional com que lhes aborrecemos na adolescência, existe a chance de um amor sincero, não pelo herói ou pelo déspota imaginários, mas pela personalidade complexa e real, que tem um corpo e uma história cheios de cicatrizes. Por isso, acho vital nós tomarmos a iniciativa de procurar nossos pais, perdoá-los por qualquer ofensa que nos fizeram e pedir-lhes o perdão por todo desrespeito que tenhamos lhes manifestado. Ao resgatar essa comunicação, voltando a ouvir as histórias já tantas vezes contadas nos almoços de domingo, podemos começar um processo de autoconhecimento e cura interior. Sem essa atenção, sem a aceitação de nossas raízes, do bom e do ruim, do glorioso, do ordinário e do trágico, estaremos condenados à alienação, a sermos átomos soltos em uma sociedade gigantemente insensível, onde habitam vozes desnorteadas que só conseguem ouvir o ritmo da última moda e dos boletos no fim do mês. Nossos pais têm defeitos e falam bobagens, mas nós também. Mas eles sujaram as mãos na luta por dar um futuro para nós, e as nossas parecem limpas porque mal começamos a pôr à prova as nossas convicções. Um dia, jovens orgulhosos de sua intenção pura vão nos acusar de sermos velhos cansados e traidores, que se deixaram corromper pelo que está aí. E nós, entre uma risada contida e um olhar enrrugado de compreensão, vamos lhes dizer o que for necessário para retornarem ao senso da realidade. Somos apenas seres humanos. Precisamente por isso tecemos nossa identidade por elos do sangue, laços de afeto, colchas de histórias, na sala após o jantar. Se não nos reconciliarmos com o passado, e com aqueles presentes que um dia nos deixarão, apenas nos tornaremos o que juramos odiar e repetir o que ingenuamente julgamos ter deixado para trás.

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