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Meditações sobre Silêncio

Assisti ao filme Silêncio, de Martin Scorsese, sobre a perseguição aos católicos, no Japão, no séc. XVI. Não é um filme fácil, pois não se vale dos recursos comuns para prender a atenção do espectador, nem acho fácil definir qual é o argumento dele, pois, ao longo de três horas, ele se desloca para vários temas, vários pontos de vista, então, no final, eu me vi diante de uma história que, provavelmente, não é a mesma que outros viram.

Entendi o seguinte: os japoneses não viam uma religião, mas uma ameaça à sua sociedade; e a ameaça estava na convicção dos cristãos de que sua fé é universal, o que os poria em contradição com a cultura japonesa, razão por que tentariam mudá-la e, mudando-a, destruiriam a sociedade japonesa. Os cristãos viam o ódio que se travestia de racionalidade, civilidade, cortesia, enquanto sofriam torturas e até a morte. O dilema dos padres é rezar e não ouvir a voz de Deus, e em vez do martírio, tentar salvar vidas pela renúncia da fé e pela recusa de praticá-la exteriormente. Parece-me que Scorsese, se não queria desmerecer a realidade do martírio, quis levar ao extremo uma heresia antiga de que não importam as obras exteriores, desde que, no coração, se mantenha a fé inabalável. Assim, exteriormente, alguém pode agir como pagão, ainda mais se for para enganar um sistema opressor. Deus não condenaria essa pessoa, pois vê o coração.

Meditei sobre essa interpretação. O que eu faria na situação dos cristãos japoneses, no século XVI? Essa pergunta não me levou a questionar se eu negaria Cristo, apenas me fez reconhecer que eu, por minhas próprias forças, não posso nada. Dizer que, no lugar deles, eu daria minha vida pela fé é temerário, e não porque isso não seja o esperado, não porque não seja o que eu quero testemunhar. A razão é que talvez isso esconda uma vaidade: de que eu posso garantir alguma coisa, apenas porque eu quero assim. E essa é a chave que soluciona a situação limite daquela história: pensar que podemos salvar uma vida pelas nossas renúncias, apenas porque assim queremos, é vaidade. Podemos fazer o bem aos outros, podemos nos sacrificar por quem amamos, mas não há garantias aqui de que isso será necessariamente efetivo. Nós simplesmente não temos o poder de mudar os corações. Na parte central da narrativa, quando o padre jesuíta quer salvar as vidas daqueles homens e mulheres torturados e pisa na imagem de Nosso Senhor, ele se ilude com a promessa de que eles foram salvos. Seus corpos vivem, mas por quanto tempo? Eles podem prosseguir no culto cristão, mas será isso, por si só, garantia de que estejam salvos? Pode a negação da verdade se converter em afirmação dela? A sua renúncia de praticar a fé pode reparar a violência praticada pelo outro e, ao mesmo tempo, ser motivo de fortalecimento da fé de outros?

Em contexto diverso, se afirmamos nossa fé, o que ela garante a respeito dos outros? Nada, ou quase nada, na verdade. Que eu creia não garante que outros creiam ou venham a crer. Pois não está em cena apenas a graça de Deus, que é infinitamente poderosa. Nessa drama, insere-se também a liberdade humana. Entretanto, há algo que eu garanto: que a palavra que eu digo é verdadeira, pois estou disposto a morrer por ela, e este é precisamente o sentido do martírio. Assim, a única coisa que posso defender é minha alma, minha consciência, minha fé, meu testemunho. Eu não tenho controle sobre o restante, não tenho o poder para resolver o problema do mundo, mas tenho o poder de conhecer, querer e agir e, pela graça de Deus, de crer, esperar e amar. É verdade que eu não posso mudar o mundo. É verdade que, por minhas próprias forças, mal consigo corrigir um mau hábito. Mas é verdade, crida com fé católica, que posso pela graça de Deus converter-me: mudar "o mundo" que habita em mim.

Na Cruz, Nosso Senhor foi tentado a descer para salvar os homens. Ele podia continuar como Cristo, reinar poderoso sobre as nações. Mas se Ele fizesse isso, então a salvação não seria verdadeira. Pois a mentira não seria reparada com a verdade, o ódio não seria reparado com o amor, a morte não seria reparada com a vida. Entretanto, a mentira seria trocada por outra (travestida de verdade), o ódio por outro (travestido de amor), a morte por outra (travestida de vida). Um ciclo dialético sem solução. E a verdade dissimulada seria um veneno, como se diz em um momento do filme. Por isso, Cristo morre na Cruz. A sua morte salva, porque ela admite o dilema na sua tensão máxima: esse ciclo não pode ser rompido senão aceitando em si mesmo a contradição mais radical, conciliando-a por um ato de amor e sacrifício. Deus e homem, a eternidade e o tempo, o amor mais puro e o ódio mais violento, a alegria do Paraíso e a tristeza mais profunda, a glória e a ignomínia. Por isso, só Cristo salva. Não sou Deus para julgar os padres apóstatas, não sei se eles se condenaram ou se eles foram salvos, mas, meditando sobre a história do filme, creio que seu maior pecado não foi renunciar a Cristo, mas foi acreditar que podiam manter a consciência cindindo-a ao meio, que podiam resistir à opressão aderindo a ela, que podiam salvar corpos quando estavam lá para salvar almas, que podiam salvar vidas por uma escolha sua quando a salvação é pela Vontade de Deus, que podiam operar essa salvação seguindo o fluxo das contradições do mundo (de mentira em mentira, de ódio em ódio, de morte em morte) quando desde o começo o que Cristo pedia deles é que O seguissem na Cruz.

Ao me imaginar diante daqueles homens e mulheres torturados, passa pelo meu coração o desejo de dizer-lhes o que, em II Macabeus 7, a mãe disse aos seus filhos, mortos por Antíoco, porque eles se recusaram a abandonar a fé:

22. Ignoro, dizia-lhes ela, como crescestes em meu seio, porque não fui eu quem vos deu nem a alma, nem a vida, e nem fui eu mesma quem ajuntou vossos membros.
23. Mas o criador do mundo, que formou o homem na sua origem e deu existência a todas as coisas, vos restituirá, em sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor às suas leis.

Ocorre-me também a lembrança de outro filme, o Príncipe do Egito. Após vários e dolorosos castigos do faraó, os judeus ficaram abatidos e sem esperança. Nesse momento, Moisés lhes dirige as seguintes palavras: "Faraó tem todo o poder, ele pode tirar sua comida, seu lar, a liberdade. Ele pode tomar seus filhos, suas filhas. Resumindo, faraó pode tomar até as suas vidas. Mas tem uma coisa que ele não pode tirar de vocês: a sua fé."

Assim, no final desta meditação, vejo que o filme Silêncio pode não ser um exemplo de ortodoxia católica, mas tem a qualidade de desafiar sua platéia: até que ponto você se prende a ilusões de grandeza e, por isso mesmo, deixa de ter fé? Até que momento estaria disposto a provar sua convicção e não começaria a barganhar sua consciência com ilusões de paz e boa vida?

O protagonista do filme, Padre Sebastião Rodrigues, não foi derrotado porque renunciou a fé para ter outra, mas porque ficou cindido entre o interior e o exterior; e não ficou livre da prisão e da tortura, pois, por toda sua vida, foi uma consciência presa em seu próprio corpo, a todo momento suspeitando dos olhos comuns que o vigiavam nas tarefas do dia-a-dia. Sua renúncia de praticar a religião não freou a a vontade dos poderes seculares de persegui-la. Essa situação é semelhante a nossa, neste tempo, nesta sociedade. E qual é nossa resposta a esse desafio?

"Aquele que quiser me seguir, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Mas aquele que perder sua vida por causa de mim, encontrá-la-á" (Evangelho segundo São Lucas 9, 23-24).

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