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Por que ler "Against the Pollution of the I", de Jacques Lusseyrand?

     Soube deste livro quando tive de pesquisar sobre pessoas que, mesmo tendo algum tipo de deficiência, se destacaram na história por suas conquistas. Para minha grande satisfação encontrei muitíssimos exemplos de superação e sucesso, e dentre eles o que mais me chamou a atenção foi este escritor do século XX, professor de literatura, membro e um dos líderes da Resistência francesa à invasão nazista, prisioneiro no campo de concentração de Buchenwald, um dos trinta sobreviventes franceses — entre milhares de mortos pelo regime de Hitler — e cego desde os sete anos.
     O livro Against the Pollution of the I (em tradução livre, Contra a poluição do eu) reúne vários de seus textos, escritos originalmente para diferentes publicações, alguns inclusive com narração de suas experiências na guerra¹. Essa coletânea revela, porém, uma busca contínua na vida de Jacques Lusseyran: aproveitar o sofrimento e as próprias limitações para atentar-se àquelas coisas que, no conforto ou na agitação proporcionados pela bonança, ignoramos quase completamente. Ao dedicar-se a esse exercício de conscientizar-se, o autor descobre uma nova visão, que não se deixa impedir pela debilidade dos olhos, mas que se guia por uma "luz interior", imagem de sua consciência, que lhe mostra o que buscar e o que evitar e que se torna mais forte quando ele age com amor e serenidade e fica quase imperceptível quando ele se entrega à raiva e às perturbações².
     Se destaco esta conclusão de Lusseyran e não comento os desafios que a cegueira lhes impôs é por que o próprio autor valoriza mais o conhecimento adquirido do que as barreiras e as adversidades ao longo do processo. Estas são apenas ocasiões da vida e, segundo o autor, desde seu tempo estão se tornando cada vez mais hostis à sede da vitalidade e personalidade, o eu, ocupando-o com inúmeras urgências exteriores (segurança, riqueza, fama etc.) até tornarem-no um estranho para si mesmo. Lusseyran nos relata que todos falavam dos impactos da ação humana sobre o meio ambiente e da guerra do Vietnã, porém descuidavam de perceber um ambiente mais próximo e interior, submetido a uma ofensiva sutil e sem alarde, mas não menos danosa.

Disse-lhes que o eu é frágil. Ele não é sequer algo que realmente nos pertença, uma coleção de faculdades a que apontaríamos com orgulho. Ele é um tipo de vitalidade — sim, no máximo um tipo de vitalidade. Ele é uma força não faz muito tempo tirada de seu nascimento. Ele é uma promessa, se vocês quiserem, dada ao homem, de que um dia ele será como o universo, de que um dia ele verá o mundo com os olhos bem abertos, de que ele se perceberá e será capaz de reconhecer que há uma relação ordenada, uma reciprocidade necessária entre ele e o mundo. O eu, em resumo, é ainda tão pequeno que um nada, apenas, é suficiente para roubá-lo de nós. E agora eu o vejo sitiado e sob ataque!   
     O que chamo de eu é aquela animação, aquele impulso, que me possibilita fazer uso dos quatro elementos, desta terra onde vivo, e também de minha inteligência e de minhas emoções — sim, até de meus sonhos. Ele é, em suma, uma força que me imbui dum poder que não é disponibilizado por nenhuma outra força sobre a terra: o poder de viver sem esperar que a vida venha até mim. O ego precisa de coisas, o maior número possível delas — sejam elas dinheiro, fama, aprovação, poder, recompensa. O eu não faz tais exigências. Quando ele está presente, quando ele está em atividade, ele estabelece seu próprio mundo contra o outro, o das coisas. O eu é riqueza em meio a pobreza. Ele é interesse vital quando tudo em volta está entediado. Ele é esperança quando toda base racional para a esperança se foi. Do interior do eu floresce todo o mundo de invenções do homem. Por fim, ele é o que nos resta quando tudo mais nos foi tomado, quando nada nos chega de fora e mesmo assim nossas forças são suficientes para superar o vazio. ("Against the Pollution of the I", c. 4)    

     E como protegemos o eu? Atentando-nos a ele, cultivando-o e aliando-nos aos seus principais guardiões: os intelectuais e os artistas. Neste momento, você pode se sentir provocado a dar uma risada, julgando que isso soa bem diferente para nós, no Brasil do século XXI, do que soava para Lusseyrand, cujas referências eram poetas franceses medievais e nomes como Baudelaire e Victor Hugo. Nossa experiência recente com a arte é de exígua a dispersa entre engajamento político, entretenimento ou discussão hermética da arte consigo mesma. Em suma, não vemos na arte uma aliada para o cultivo da autoconsciência, mas no mais das vezes uma inimiga, talvez um obstáculo, no limite uma completa estranha. Mas não nos enganemos, caindo naquela velha conversa de que lá fora, e lá trás, é sempre melhor. Lusseyran já observava que os artistas em seu país e no mundo todo estavam se distanciando do eu, abrindo mão de seu poder criativo, e até cogitavam fazê-lo desaparecer.
     Mas qual é esse grande poder da arte? E como ele pode proteger o eu? Lusseyrand nos dá exemplos concretos e muito tocantes em seu texto "Poetry in Buchenwald" (c. 6), onde ele narra sua experiência no campo de concentração, destacando as condições degradantes que não só feriam os corpos, mas também abatiam os espíritos até que os homens não vissem mais sentido em viver. Um dia Lusseyrand, conversando com amigos, lhes diz "A poesia, a verdadeira poesia, não é literatura", ao que seus companheiros (um ator, outro professor) demonstram indignação, mas que logo revela sua razão. Bastou que Lusseyrand começasse a recitar os versos de que se lembrava e, depois de alguns minutos, estava cercado por dezenas de homens, de países e línguas diversos, que o ouviam e repetiam o que ouviam. Aqueles corações exaustos e desesperançados encontraram naquelas palavras melódicas uma força misteriosa que os transportava para outra dimensão na qual eles se reconheciam, se solidarizavam e encontravam beleza e humanidade. E houve muitos acontecimentos como esse.

Em uma manhã sombria, com as tintas da alvorada, éramos por volta de trinta homens exaustos, tremendo de frio, e estávamos nos batendo uns contra os outros em torno de uma das bicas vermelhas para conseguir um pouco da água gelada. Esta água brutal, interceptada pela mão, enlouquecida pelo rosto que se pressionava bem próximo dela, serpenteava por nossos peitos nus. Havia silêncio, o silêncio obrigatório para todas as atividades comunais. Mas de repente alguém próximo começou a cantar. Sua voz se elevou diante de si e estendeu-se até nós de um jeito imediatamente mágico. Era a voz de Boris, um homem tão extraordinário que não posso falar dele brevemente. Uma voz tão flexível quanto a ponta do cabelo, tão rica quanto a penugem de um pássaro, o canto de um pássaro, uma canção natural, uma voz de promessa. Sem aviso, Boris subitamente deixou este lugar de frio, manhã lúgubre e aglomeração de corpos humanos. Ele recitava "A tapeçaria de Notre Dame", de Péguy, eu acho.
     Quem de nós sabia o que Boris estava dizendo? E quem se importava? Mas trinta de nós ficamos com os braços erguidos, inclinados para frente, e um punhado de água deslizando por nossos dedos. Por fim, quando o poema tinha terminado, um homem baixo, que por meses pensei tratar-se de um sujeito estranho e aborrecido, disse-me: "Toque a minha testa. Está suada! Isto é o que me aquece: poesia!"
     De fato, o frio tinha desaparecido. Nós não sentíamos mais a exaustão.   

     Lusseyrand extrai desses eventos uma lição:

Aprendi que a poesia é um ato, um encantamento, um ósculo da paz, um remédio. Aprendi que a poesia é uma das raras, muito raras, coisas no mundo que podem prevalecer sobre o frio e o ódio. 

     Lamento profundamente que este livro não tenha tradução para o português e, por isso, não alcance grande público no Brasil. Acredito que temos muito a aprender com a partilha de Lusseyrand. A leitura de seus textos transcorre como uma conversa entre amigos, um coração que fala a outro. O autor abre para nós o espaço de seu eu, convida-nos a pôr luz sobre o nosso e, ao final, tendo compartilhado do seu conosco, saímos cada um dono de si, mais cientes da própria vida, mas o território em que nos movemos já não é o mesmo, revela-se ampliado, estendendo-se à vida de Lusseyrand e de todos aqueles que o acompanharam em sua luta cotidiana para ser alguém, uma pessoa, uma voz, uma história, uma consciência.
     Aos que têm a chance de conhecê-lo, recomendo que aproveitem e depois façam a partilha com os amigos.
   
__________

¹ Lusseyran publicou outro livro, Et la lumière fut, disponível em inglês e em português, onde se detém propriamente na descrição dessas experiências.

² Cf. "The Bling in Society", c. 1.      

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