Pular para o conteúdo principal

Por que (re)ler Memórias de um sargento de milícias?

     Você provavelmente já leu este livro nos tempos da escola e, certamente, porque o professor de português pediu, ameaçando cobrar o conteúdo na prova de literatura. Talvez como eu e outras inúmeras vítimas envergonhadas você tenha realmente gostado da leitura, mas também só desta, guardando segredo sobre essa simpatia restrita às aventuras de Leonardo ao lado de um tédio irremediável com relação a índias com lábios de mel, a senhoras com dilemas amorosos etc.
     Por muito tempo eu me culpei de ignorância e espírito bruto. Se eu não apreciava de coração boa parte daqueles romances clássicos, tão elogiados e por tanta gente, o problema devia estar em mim, certamente. Mas já se passaram alguns anos e, como diz uma conhecida minha, acho que melhorei um bocado. Ganhei experiência e dei alguns passos na árdua missão de me desasnar. Ainda assim, não parece que a leitura de José de Alencar, por exemplo, tenha ficado mais interessante para mim. 
     O problema não é só o vocabulário. Conte-se aí minha aversão ao excesso de floreio, de informação inútil e de história chata. Destaco a palavra "excesso", porque estou consciente de que eu próprio escorrego freqüentemente nesses vícios. Para fazer justiça, e não parecer que estou encampando alguma batalha contra os "pais da literatura brasileira", digo ao leitor que um amigo, do curso de Letras,  já me fez o obséquio de explicar que a literatura muda e os gostos também, tanto que fórmulas bem sucedidas de contar uma história hoje quase certamente não funcionarão no futuro. "Acredite se quiser, houve um tempo em que esses livros foram um sucesso e agradavam o público". Não pretendo me estender nesse argumento. Reconheço nele um princípio verdadeiro, mas também lhe faço objeções, e o Memórias vem bem a calhar para expor e desenvolver uma delas.
     A obra literária revela seu valor quando sobrevive à sucessão das modas e continua falando ao coração do público, tanto mais se consegue falar a todos os corações, em diferentes línguas. A comédia que nos conta sobre as peripécias de Leonardo, das malcriações do moleque até as confusões amorosas do jovem, cativa-nos pelas personagens — familiares sob tantos aspectos — e cumpre com sucesso a tarefa estética de pôr ordem nas vivências humanas, tornando para nós mais acessíveis aquelas experiências ora corriqueiras ora repentinas para as quais dificilmente encontramos as palavras apropriadas. Gosto muitíssimo da cena do capítulo 23, em que o atrapalhado Leonardo tenta declarar à tímida Luisinha os sentimentos românticos recém-descobertos. A hesitação de um e a reação da outra proporcionam rápida identificação e boas risadas. Sabemos o que se passa na cabeça dos dois só com a descrição dos seus gestos.
     A qualidade literária fica mais evidente ao repararmos que o narrador se vale de um discurso formal e culto sem, por isso, abdicar de expressões populares, que são integradas aos acontecimentos narrados de uma forma criativa, que acrescenta significado ao momento. Por exemplo:

Um dia de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação; e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem, na época em que viveram as personagens desta história a coisa subia de ponto; enchiam-se as ruas de povo, especialmente de mulheres de mantilha; armavam-se as casas, penduravam-se às janelas magníficas colchas de seda, de damasco de todas as cores, e armavam-se coretos em quase todos os cantos. É quase tudo o que ainda hoje se pratica, porém em muito maior escala e grandeza, porque era feito por fé, como dizem as velhas desse bom tempo, porém nós diremos, porque era feito por moda: era tanto do tom enfeitar as janelas e portas em dias de procissão, ou concorrer de qualquer outro modo para o brilhantismo das festividades religiosas, como ter um vestido de mangas de presunto, ou trazer à cabeça um formidável trepa-moleque de dois palmos de altura. (Parte 1, Capítulo 17, "D. Maria")  

     A leitura desse livro deve nos fazer pensar sobre as famosas regras de redação, que começamos a aprender na escola e que se vão tornando mais artificiais à medida que avançamos no dever de diplomar-se e parecer gente instruída. Por que precisamos ser prolixos para cuidar da beleza do texto? Por que sacrificar a ordem gramatical em nome da expressividade? Podemos atender às exigências da forma e, mesmo assim, contar uma boa história. Nem precisamos proibir acesso ao papel àquelas palavras eruditas ou mais desconhecidas do público. Manuel Antônio de Almeida, ele mesmo, emprega vários termos que não são mais conhecidos popularmente e que nos obrigam a consultar dicionário e tudo. Mas isso não impede que a leitura se realize, e com muito gosto.
     Além do valor estético, o livro tem uma rica contribuição para nossa memória afetiva sobre o Brasil. A história se passa no Rio de Janeiro, em uma sociedade promovida de colônia para reinado. Ela nos apresenta os hábitos da população no dia a dia e, através dos comentários do narrador, acomodado anos à frente, no Império, ela nos sugere algumas transformações pelas quais esses hábitos passaram. Vários lugares e personagens que vemos estáticos e dissecados nos livros de História aparecem, no enredo de Memórias, com dinamismo e vivacidade, como, por exemplo, a ucharia, que dificilmente adentra nossa imaginação enquanto permanece no registro do dicionário (dispensa da família real). Uma vez ligada às confusões de Leonardo, a ucharia se torna memorável, até cômica, sendo o palco de trapaça, aventura amorosa e barraco (que o diga Vidinha).
     Por essas razões, creio que deveríamos aprender mais com Almeida sobre a arte de escrever. Não menos proveito há para quem apenas desejar uma leitura agradável e divertida, pois esta tem passado bem no teste do tempo.

Os interessados podem encontrar o livro disponível neste endereço:
                   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Matthias Grünewald e a "Crucifixão"

"Crucifixão", de Matthias Grünewald (1510 - 1515) Gostaria apenas de partilhar esta imagem da Paixão de Nosso Senhor. À direita vemos São João Batista apontando Jesus crucificado. Entre sua mão e sua cabeça está escrito em latim: "É necessário que Ele cresça, porém que eu diminua" - frase que o Batista disse, segundo a narração de São João, Apóstolo e Evangelista. Sob a mão indicadora de São João Batista, vemos o cordeiro abraçando uma cruz e jorrando sangue dentro do cálice. Esta é uma alusão clara ao sacrifício de Nosso Senhor,  Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo  e sua expressão sacramental na Santa Missa.  Porém, o mais impressionante desta pintura é a retratação da dor feita por Grünewald. As mãos retorcidas de Cristo é um detalhe impactante, pois expressam um intenso sofrimento. O rosto abatido de Jesus transparece a serenidade, mas também a exaustão após sofrer tantos suplícios. Gombrich, em seu livro "História da Arte", chega a

Por que ler "As quinze primeiras vidas de Harry August", de Clair North?

     Harry August está a beira da morte quando uma criança se aproxima de sua cama e lhe diz: "O mundo está acabando." Ele responde sem perturbação: "Ora, ele está sempre acabando." Ao que a menina corrige, com ar grave: "Mas está acabando cada vez mais cedo." Esse diálogo tão estranho ganha uma explicação logo no início da narrativa: Harry, a criança e muitos outros não morrem simplesmente, mas retornam com a memória intacta ao ponto de partida, o dia de seus respectivos nascimentos, na longa linha histórica que vai desde a mais remota Antiguidade até certo dia no futuro. Assim, eles se lembram das vidas de outras vezes e sabem sobre os grandes eventos por vir, enquanto o restante da população, composto de "lineares", não se recorda e experimenta tudo como se fosse a primeira vez. Mas nem tudo está determinado. Se Harry quiser, pode reunir as condições necessárias para influenciar os grandes eventos e, desse modo, mudar o rumo da história. Mas

O "hoje" da filosofia e da história da filosofia

Conferência apresentada no II Encontro de Pós-Graduação em Filosofia, na UNICAMP, no dia 14 de novembro de 2019. O tema era "Por que filosofia hoje?".  Bom dia aos colegas. Agradeço aos organizadores do II Encontro da Pós-Graduação da Filosofia da Unicamp e a Capes pela oportunidade de estar aqui com vocês, nesta manhã, e poder refletir sobre a pergunta “Por que filosofia hoje?”. Se a questão é para outros ou para mim. Em uma primeira leitura, focada no contexto social e político brasileiro, a pergunta nos dirige a dar razões para defender a pesquisa acadêmica em Filosofia, na universidade pública e com financiamento do Estado. Em princípio, procuraríamos pelos benefícios sociais da pesquisa acadêmica com financiamento estatal para o Brasil deste século, mas, na prática, qualquer justificativa nos serviria desde que nos mobilizasse a agir para a manutenção das nossas atividades ou que de um jeito ou de outro compelisse as autoridades a mantê-las. Pensaríamos