Pular para o conteúdo principal

Por que precisamos de bons escritores?

     Em publicação recente¹, o crítico literário Rodrigo Gurgel comentou o livro Safra, de Abguar Bastos. A análise do professor nesta e em outras plataformas é sempre muito proveitosa para mim, uma vez que, para quem não o sabe ainda, Gurgel tem o projeto de percorrer os autores brasileiros do fim do século XIX em diante, examinando individualmente suas virtudes literárias e, no âmbito mais geral, qual é a contribuição de cada um para a formação da literatura nacional². Ler essas análises está me ajudando a fixar raízes na história do meu país e, ao mesmo tempo, está me fazendo pensar sobre meus esforços de leitor e escritor. 
     Na referida publicação sobre Abguar Bastos, por exemplo, Gurgel menciona uma sentença de Manuel Bandeira a respeito dos escritores brasileiros: Sobra-lhes imaginação, falta-lhes fantasia. O que isso quer dizer? Entendendo-se por imaginação "a aptidão de reproduzir no espírito as sensações" e por fantasia "a capacidade de organizar as imagens na unidade de uma obra", Bandeira reconhece entre nossos artistas da escrita o domínio das técnicas e a força para criar uma história com diferentes personagens, porém, a seu ver, a força criativa é ainda muito limitada, decaindo à medida que se dirige à representação de vivências mais complexas e complicadas. Em resumo, sabemos escrever, mas ainda somos muito superficiais e desorganizados na imaginação.
     De fato, dominar a técnica escrita não basta para dominar a arte da composição literária, assim como não é suficiente ser instrumentista para compôr músicas, nem estar familiarizado com pincéis e tintas para criar uma obra de arte. Quem desejar compreender a distância entre uma coisa e outra pode encontrar grande proveito na leitura de "A obra-prima ignorada", de Honoré de Balzac, e de "O retrato", de Nicolai Gogol. O escritor, como todo artista, trabalha na composição de imagens e símbolos, por meio da nossa sensibilidade, mas se não restringe à experiência da epiderme. Ele certamente domina o conhecimento dos sinais pelos quais uma pessoa se comunica com outra, ou pelas quais uma toca na outra, mas ele também não se limita às regras do seu uso, e não as suspende todas, tampouco. Ele emerge sobre a correnteza das sensações e atitudes habituais e irrefletidas e encontra um ponto estável de observação dessas experiências, descobrindo inclusive outros caminhos e formas de resistência à automatização da vida. Entretanto, o escritor não é o sujeito descontrolado, que por algum privilégio misterioso é assaltado pela "inspiração".  
     Como diz Conde Buffon, no "Discurso sobre o estilo", a composição segue naturalmente a ordem da inteligência dona de si e da idéia que deseja comunicar. O seu resultado não é um acidente. O escritor não tropeça nele por acaso, como se não procurasse por uma forma para expressar algo. Buffon, ele mesmo, sugere ao escritor que medite sobre a ordem das idéias, discerna as principais e as acessórias, preveja o efeito da escrita sobre o leitor. Esse exercício meditativo facilitaria a tarefa de pôr tudo no papel. A fortuna do resultado é medido, segundo Tolstói³, pela capacidade de o leitor conectar-se com a humanidade inteira ao contemplar a obra produzida. A obra-prima é aquela que une em um só coração todas as gerações humanas.
    Por isso reconheço que o escritor comprometido com seu ofício convive com a inquietação de buscar significado e encontrar os símbolos mais adequados para expressá-lo. A ordem da composição estética é chave para destrancar o ritmo interior, a harmonia exterior, a unidade do cosmos. Mas também ela pode ser remédio para reencontrar a ordem das coisas, ou uma ordem nas coisas, revelando possibilidades antes ignoradas ou vias de restauração. Um exemplo para mim são as obras de Dostoiévski, que desejo comentar em outra ocasião. É evidente que todo esse empreendimento é grandiosíssimo, tão extenso quanto às possibilidades da vida humana. Também é certo que, se quiser obter sucesso, o escritor deverá dedicar-se muito e por tempo indefinido a atentar-se a essas possibilidades, compreendê-las, assimilá-las na sua própria consciência e depois retransmiti-las dentro de uma ordem textual.
     Não quero dizer, com todo o exposto, que escritores bons são apenas os geniais, que alcançaram a perfeição, pois pessoalmente não acredito que essa perfeição seja possível. Acredito que todos os bons escritores se distinguiram muito mais por sua luta com as palavras do que por algum triunfo definitivo. Creio que mortais, assim como você e eu, podem satisfazer o que Bandeira apontou como necessidade de fantasia. Penso que o ponto de partida, e talvez o percurso todo, seja buscar a própria voz dentro da realidade e comprometer-se sinceramente com o próximo, comunicando-lhe as complexidades da existência tanto quanto for possível e ajudando-o a encontrar os símbolos que possibilitem reconhecer as coisas, pensar sobre elas e encontrar direção em meio à caótica das experiências cotidianas.    

____________________________

¹ GURGEL, R. "Maquinismo ideológico". rascunho, nov. 2017. Disponível em: http://rascunho.com.br/maquinismo-ideologico/. Acesso em: 27 fev. 2018.

² Sugiro ao leitor a aquisição, e conseqüente leitura, dos livros Muita retórica, pouca literatura (2012), Esquecidos & Superestimados (2014) e Crítica, literatura e narratofobia (2015).

³ TOLSTÓI, L. "O que é arte?" In: Os últimos dias. Penguin Companhia, 2011. (Clássicos). Destaco esta passagem: "O principal é que a arte não é o prazer, mas um meio de comunicação que, unindo pessoas pelos mesmos sentimentos, é indispensável para a vida e o progresso de cada indivíduo e de toda a humanidade." (p. 98)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Matthias Grünewald e a "Crucifixão"

"Crucifixão", de Matthias Grünewald (1510 - 1515) Gostaria apenas de partilhar esta imagem da Paixão de Nosso Senhor. À direita vemos São João Batista apontando Jesus crucificado. Entre sua mão e sua cabeça está escrito em latim: "É necessário que Ele cresça, porém que eu diminua" - frase que o Batista disse, segundo a narração de São João, Apóstolo e Evangelista. Sob a mão indicadora de São João Batista, vemos o cordeiro abraçando uma cruz e jorrando sangue dentro do cálice. Esta é uma alusão clara ao sacrifício de Nosso Senhor,  Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo  e sua expressão sacramental na Santa Missa.  Porém, o mais impressionante desta pintura é a retratação da dor feita por Grünewald. As mãos retorcidas de Cristo é um detalhe impactante, pois expressam um intenso sofrimento. O rosto abatido de Jesus transparece a serenidade, mas também a exaustão após sofrer tantos suplícios. Gombrich, em seu livro "História da Arte", chega a ...

Plano de estudo

Este texto é de autoria duvidosa. Muitos o atribuem a Santo Tomás de Aquino. Embora trabalhasse com a possibilidade de ele não ser da autoria do santo, o Pe. Sertillanges, grande tomista do século XX, inspirou-se nele para escrever seu livro "A vida intelectual", que é também excelente, recomendadíssimo. No Brasil, o Prof. Lauand acredita na sua autenticidade ( aqui ). Pelo sim, pelo não, todos concordam que o texto traz preciosos conselhos e que eles harmonizam-se perfeitamente ao espírito disciplinado, estudioso e ascético do Doutor Angélico. Eu o traduzi com base na edição eletrônica disponível em "Corpus Thomisticum". Sobre o modo de estudar Caríssimo João, em Cristo, Porque me inquiriste sobre o jeito como deves estudar para adquirir os tesouros do conhecimento, ofereço-te um plano: (1) que pelos pequenos rios, e não imediatamente em pleno mar, escolhas adentrar [na ciência], pois é preciso avançar do fácil em direção ao difícil. Este é, portanto, o m...

Saramago e seu ateísmo de manual

Como nos informa o jornal Folha de São Paulo, José Saramago publica esta semana o romance "Caim", definido pelo próprio autor como um livro destinado a fazer uma crítica às religiões judaico-cristãs. Pelo que informa a reportagem, Saramago escolheu como seu porta-voz o personagem bíblico Caim; no caso, Caim (que matou o irmão e foi condenado a vagar errante pelo mundo) viaja pelos tempos e lugares do Antigo Testamento, para testemunhar as atitudes de um Deus vingativo, castigador dos bons, carrancudo, etc. Saramago não é original nesse ponto. Esse tipo de visão é típica dos manuais ateus mais superficiais, ou melhor, é uma visão própria de pessoas que não se dedicam a ler a Bíblia com atenção, mas, sim, com certa pressa, aquela pressa dos "livres pensadores" — preocupados demais com os assuntos mais racionais e relevantes. Saramago diz a respeito da Bíblia: " À Bíblia eu chamaria antes um manual de maus costumes. Não conheço nenhum outro livro em que se ma...