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Por que assistir a "Arrival", de Denis Villeneuve?

     Minha intenção era escrever sobre este filme depois de ler o conto "História da sua vida", de Ted Chiang, no qual o roteiro se inspirou. Porém, após alguma meditação, decidi que seria melhor avaliar a obra cinematográfica do diretor Denis Villeneuve em seu próprio formato e realidade, já que provavelmente este é o produto com mais chances de difusão no Brasil. Para compôr este texto, evitei me apoiar em outras publicações da internet, o que não quer dizer que eu não tenha lido algumas. No geral, fiquei decepcionado com o tipo de recepção que o filme teve entre os interessados em cinema, pois a qualidade das análises, mesmo quando positivas, era muito superficial. A culpa deve ser minha, do meu apego aos símbolos e a quase completa ignorância dos aspectos técnicos. É verdade que "luz, câmera e ação" podem ser elementos fascinantes para críticos de cinema ou aspirantes à carreira na sétima arte, mas tenho minhas dúvidas sobre o que a técnica pode revelar sobre o potencial deste filme, em especial para lidar com o problema da "visão de mundo" atual.
     Em resumo, eis o problema: nós ouvimos muitas conversas especulativas sobre o que há no universo, lemos muitas histórias fantásticas de viagens no espaço e para outras dimensões, assistimos a filmes pós-apocalípticos onde os limites humanos são testados e até destruídos, mas nada disso nos dá uma visão da unidade do real. Estas são imagens dispersas e fragmentadas que freqüentemente sugerem idéias contraditórias umas com as outras. O espírito de inovação, de lançar novas modas e de sempre mostrar algo nunca visto, talvez favoreça essa dispersão. Como a religião está perdendo seu poder formador (por negligência dos próprios religiosos), certa tendência secularista avança, mas esse secularismo não tem uma visão positiva e unitária do mundo, pois concentra-se hoje na idéia de diversidade, que segue uma dinâmica mais desconstrutivista (se é que me entendem). 
     Nesse contexto, penso que o filme Arrival tem grande potencial para formar uma "visão de mundo", talvez seja em muitos anos o primeiro grande esforço de tentar isso. Logo de cara, é evidente que a história reaproveita diversos símbolos do cristianismo e emprega-os de um modo original, junto com temas amplamente explorados pela cultura pop, para tratar de uma realidade próxima e atual. Assim como no Novo Testamento, doze naves mensageiras anunciam uma palavra que pode trazer salvação aos homens — e também aos mensageiros (em alguns milhares de anos). Como Jesus recomenda aos discípulos, aqueles que anunciam a "palavra da salvação" andam em pares e, semelhantes a duas mãos, eles se estendem sobre os seres humanos para ungi-los, em um novo Pentecostes, dando-lhes uma linguagem universal, capaz de unir todos, em todo tempo e todo lugar. Eles também possuem sete pernas, em referência ao número sagrado da perfeição. O número doze pode ser alusão aos Apóstolos, mas também às tribos de Israel.    
     A atmosfera etérea e sutil que cerca os heptapodes, que surgem e somem do nada, sem produzir efeitos físicos de sua presença, acentua a superioridade deles ao mesmo tempo que lhes empresta um caráter sobrenatural e místico. Será a "chegada" deles um novo marco na história da humanidade? Eles são altamente tecnológicos, mas essa tecnologia inspira algo de temor religioso. Os heptapodes vêm à Terra para ensinar o homem uma forma de dominar o tempo, e quem sabe lidar de outro modo com o problema da morte? Eles têm uma palavra que comunica, num só ato, o princípio e o fim. E aquele que recebe essa palavra, e aceita-a, converte-se de tal modo que passa a viver cada momento estando ligado a todos os outros momentos da vida. Assim, resgata-se um antigo adágio moral: "Ou vive-se como se pensa, ou pensa-se como se vive". A doutora Louise Banks, a primeira a falar a língua universal, tem acesso ao seu passado, presente e futuro. Algumas partes do filme sugerem, inclusive, que ela não segue a correnteza linear do tempo, mas salta de um momento para outro, do presente para o futuro, deste para o passado, quase como se vivesse tudo de uma só vez. A ordem não é importante. Tal como o nome de sua "futura" filha, Hannah, sua existência é um palíndromo, do começo para o fim, do fim para o começo, sem distinguir sucessão, em um presente simultâneo e total, semelhante à eternidade.
     Mas os seres humanos não parecem dispostos a acolher a boa nova. Na verdade, eles não a entendem de modo algum. Estão todos divididos em nações, culturas e línguas diferentes, mas o ponto principal é sua divisão de interesses. Parecem incapazes de se entenderem e de colaborar entre si. Na falta de comunicação, o medo prevalece, dando espaço às soluções belicistas. Como lidar com essa realidade? O poder que Louise aprende com os heptapodes ajuda-a a encontrar uma solução para o climax da história, mas não nos prendamos demais a essa primeira camada. A nova experiência de Louise com a existência impõe-lhe uma pergunta clichê, mas em um contexto que lhe desafia a dar uma solução mais consciente: "Se você conhecesse sua vida toda, mudaria algo?". Não fica claro se Louise tem ou não liberdade de mudar os fatos de sua vida, mas é evidente que ela decide aceitar cada acontecimento. Ela sabe que se casará, que terá uma filha, que se divorciará, que a filha ficará doente e morrerá cedo. Em um tipo de estoicismo, abraça a fatalidade sem medo do sofrimento, sem arrependimentos. Esteve, está e estará em cada instante, rememorando tudo com a máxima intensidade. 
     Acredito que esta obra ainda merece análises melhores e mais aprofundadas. Ela é notável por ser capaz de condensar tantos significados, resgatando símbolos da cultura tradicional e articulando-os com novos símbolos da cultura em formação, abrindo-nos a inteligência para considerar mais atentamente a experiência do homem atual e da humanidade em geral. Nisto encontro a prova de seu valor como obra de arte, além da sua fecundidade em gerar uma visão de mundo. Não quero com essas palavras dar a entender que endosso essa visão; apenas não quis deixar passar em branco o fato de que essa visão está lá e que, para proveito dos debates culturais, ela deveria ser melhor apreciada.                     

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