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Lições do ano passado

Este é um texto que marcou para mim uma transição, um amadurecimento. Partilho agora, confiante de que sirva de ajuda para outros. Boa leitura.

As férias deram-me sempre oportunidade para pensar na vida. Muito tempo disponível - e não preciso dizer mais nada sobre isso. O que me faz novamente me aventurar neste espaço de expressão, depois de algum tempo de jejum, é esta noite vívida de meditação que me dá humor e disposição para dizer algumas palavras. O assunto é a vida. Sei que não é aquele tipo de tema que conquista os olhos logo de imediato. Dificulta mais considerar que há muitos por estas bandas que ensaiam algumas poesias ou prosas sobre vida e acabam a tornando objeto de pensamento muito tedioso, quando não são as próprias letras dedilhadas dignas de bons bocejos.

Mas a intenção aqui não é dramatizar. Do drama temos a dose suficiente no dia-a-dia. Nossas personalidades dão conta de tingir as horas com cores roxas e pretas. Quero me queixar da minha vida, mas, na pratica, isso significa que preciso confessar algumas coisas. Porém, não quero fazer isso do modo como adolescentes fazem, gritando ós e poxas, xingando e se lambuzando em autopiedade. Talvez o melhor tom para dirigir este texto seja aquele com que Beethoven compôs sua Sonata ao Luar, um tom de tristeza, mas bonito, inspirador. Mas sem a melação. Há quem escreva textos muito melosos, cheios de noites, luares, donzelas, amores e promessas, na esperança de fazer os olhos do leitor grudarem nas páginas. Daí os coitados se agitam desesperadamente para desgrudar daquelas mortíferas palavras e não conseguem. Até tiveram a chance de evitar a armadilha. Os títulos já denunciam muito do que virá a seguir. Porém, arriscam-se e depois que caem de cara naquelas histórias de Sabrina, arrependem-se amargamente. Tarde demais para se livrar, precisam ir até o fim e concluir a sessão de automutilação, recordando-se a cada parágrafo o quanto sua vida está distante de ser considerada plena. Pois bem, eu não quero me valer desses artifícios. Quero que meu leitor consiga sair daqui quando quiser. Não prometo catarse, nem farei com que se sinta mais miserável. Considere-se, então, liberto. Assista televisão, que servirá melhor de anestésico do que poderia servir isto que escrevo abaixo. 

Os dias de 2012 e os novos de 2013 me trouxeram um estranho senso de mudança e amadurecimento. Muitas vezes eu pedi a Deus que me desse chances de ser alguém melhor, que cortasse pela raíz minha safadeza bem acomodada e que, sei lá, me ensinasse alguma lição que ainda não aprendi e que, pela sua experiência, devolvesse a mim a conexão com a realidade. Eis que meus pedidos foram atendidos. Não duma só vez, mas gradualmente. Começou lá atrás quando eu fui estudar em outra cidade e completa-se agora que devo tomar conta do meu próprio nariz - como se costuma dizer. Em breve não terei ninguém atrás de mim, dando cobertura. Serei eu e as responsabilidades de adulto. 

Olho os meus amigos e as pessoas de minha convivência e vejo que partilhamos todos um mesmo problema. Os confortos que a história humana conquistou para nossa geração nos deixou folgadamente tranqüilos durante muitos anos, desde o momento em que nascemos até o tempo dos vinte anos. Em particular, cresci sem saber caçar, plantar, construir e concertar, práticas que são consideradas primitivas, mas que, convenhamos, são pilares de civilização. 

Eu sei apenas teorizar e, por culpa de alguém, tenho um certificado que me permite passar essa vício para o futuro da nação. Mas, para não ficar apenas enumerando o que não sei fazer, devo dizer que, na faculdade, tive de aprender a cozinhar, lavar, passar, fazer as compras de supermercado, dirigir e cuidar da casa. Apesar de homem, sou bem ensinado nas artes domésticas. Todavia, sempre tive alguém por perto, a quem eu recorria facilmente nos casos difíceis que ficavam de fora da rotina estudantil. Mas agora não tenho mais e preciso tomar decisões sozinho, enfrentar a vida com meus próprios punhos e pernas.

Cuidar de si mesmo é um ponto de teste. Ganhar o próprio dinheiro, garantir o próprio sustento, pagar as próprias contas, administrar compromissos e responsabilidades, responder pelas próprias ações e pelas ações de subordinados, ser cobrado e sofrer as conseqüências das próprias ações. Agora não mais em contexto pedagógico, pois deixamos de ser café-com-leite. Passou-se o tempo em que a punição era uma suspensão, uma bronca, alguns dias de castigo sem poder assistir programas de televisão ou jogar vídeo-game. Agora é tudo ou nada. Errou, está fora. Acertou, trabalhe mais. Talvez, por mérito ou por bajulação, haverá algum dia de glória: uma promoção, um aumento de salário. Mas não podemos contar com situações ideais, temos de nos arriscar, contando com a Divina Providência e, na falta de fé, lançar-se cegamente ao futuro, esperando com mais ou menos confiança esbarrar numa boa notícia.    

Os problemas sociais batem à porta. Eles pedem ajuda, um quilo de alimento, um prato de comida, um teto, uma ajudinha aqui e outra ali, uma força, um gesto de camaradagem. Eles ganham nome, personalidade e história. Aquelas idéias com que brincávamos de revolucionários e modernos durante o colégio começam a ser testadas na prática e o mundo que parecia tão simples de ser explicado reivindica a sua complexidade, pisoteando cada parte daquelas novidades pueris e reclamando o conselho e as advertências dos mais velhos. Afinal idéias têm conseqüências. Se pensávamos que todos eram bons, deparamos-nos - com dinheiro na mão - com os primeiros aproveitadores, cínicos, charlatães, dissimulados, ambiciosos, detratores. Se pensávamos que todos eram maus, testemunhamos os primeiros gestos heróicos de abnegação de uma pessoa em favor de outra, as primeiras mãos estendidas, os primeiros amigos para toda hora, as primeiras cervejas de cumplicidade e os primeiros sofás disponíveis nas noites de não saber aonde ir. A oração dirigida a Deus começa a deixar de lado o teatro e passa a adquirir gravidade. Dos altos sonhos a cabeça desce até que os pés toquem o chão da labuta diária.  E se algum dia chegamos a nos achar muito lindos e piedosos, isso se desfez nos nossos primeiros "para ontem", "se dane", "cada um com seus problemas", "não é da minha conta", "bem feito", "se vire", "não posso ajudar", "não tenho", entre outros dizeres muito sinceros e muito solidários do contato com as necessidades urgentes de outras pessoas. Agora não temos mais como ensaiar boas intenções, o esboço já tem de ceder espaço ao projeto e este já precisa ser posto em execução.

Chegamos à juventude e findaram-se as chances de sobreviver a ingenuidade adolescente. Daqui em diante a realidade deixa de ser virtual e torna-se tátil, e ela é fria e quente, dura e movediça, delicada e espinhosa, bela e assustadora. Estas são as lições que minha vida me apresenta.    

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