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O entendimento atual sobre sinceridade

Nós aprendemos desde crianças a buscar espontaneidade. A certa altura da nossa formação, dizem-nos que, para sermos sinceros, precisamos expressar espontaneamente o que sentimos e que, sendo as restrições e os limites da ação a nós impostos pelos outros (a sociedade), as normas obstaculizam nossa expressão e, se seguidas por obediência, elas nos lançam à hipocrisia e privam-nos da autonomia.

Esse ensinamento contrapõe espontaneidade a obediência, expressão dos sentimentos a normas, sinceridade a hipocrisia. Por ele dizemos que as normas aceitas de fora dissociam as nossas ações dos nossos desejos e, por essa razão, dissociam-nas de nós mesmos. Como os desejos parecem surgir espontaneamente, assim como os sentimentos de alegria, tristeza, dor e gozo, concluímos que eles são a sede da liberdade e o que melhor expressa «quem somos». Deixar de agir segundo os próprios desejos e sentimentos parece o mesmo que trair nossa identidade e desconectar-se de si mesmo, parece também que nós perdemos a «autonomia» da ação e parece que nossas ações são falsas, pois seguiriam normas vindas de fora, e não de dentro (o que denotaria que são normas impostas, pois não desejadas), e normas às quais nós não reconhecemos a capacidade de expressar o que desejamos e sentimos.

Por outro lado, quando agimos segundo o que desejamos e sentimos, parece que somos sinceros e que nos expressamos com autenticidade. A espontaneidade acrescenta às ações a aparência de liberdade, autonomia e autodeterminação.

Nesse quadro, agir segundo o que desejamos e sentimos não significa necessariamente agir sem normas – sem ordenação por regras. Significa apenas que as normas atendem aos nossos desejos e nossos sentimentos e significa que elas provêm de dentro (como se dos desejos e sentimentos se seguissem normas), ou duma adesão interna às normas elaboradas pela razão, mas que é acompanhada pela manifestação do desejo e do sentimento. Há acordo entre a norma e os desejos e sentimentos, pois aquela atende às exigências destes. 

O sinal de que a norma não deve mais ser admitida é que ela não tem mais capacidade de expressão do que desejamos e sentimos e, no limite, faz obstáculo a ela. A norma parece tediosa, opressora, estéril, repetitiva, vazia, pois não é mais espontânea, mas é planejada e seguida mecanicamente, por assim dizer. Considerando a espontaneidade como sinal mais evidente da sinceridade e os sentimentos como as manifestações mais sinceras de quem somos, não faz sentido seguir a norma porque ela deve ser seguida (por recurso à obrigação ou à obediência), ou porque ela é justa (por recurso a uma ciência moral objetiva).

Todo este entendimento sobre a sinceridade baseia-se em duas suposições: de que a inteligência não participa da nossa vontade e de que os sentimentos e os desejos são sinais inequívocos do que beneficia a nós e aos outros. 


Acontece que as nossas decisões não são apenas desejadas, mas também são pensadas. Além dos desejos e dos sentimentos, nós temos intelectualmente visão do mundo e valores. Quando alguém decide trabalhar como médico, por exemplo, não considera apenas o que sente em relação às aulas de medicina ou em relação aos hospitais, médicos, enfermeiros e pacientes. Considera também o que significam essas coisas, sua ordem própria, ao que se dirigem e como elas podem fazer parte do sentido da vida. "O que eu quero fazer da minha vida? Que obras realizar? O que construir? Que legado deixar para posteridade?". Com freqüência, deixamos de satisfazer nossos desejos porque os julgamos fora de lugar ou enganados. Aquele pedaço de torta de chocolate é muito apetitoso, mas, se eu sou diabético e quero conservar minha vida, preciso evitá-lo por causa do açúcar. Eu sei que meu corpo precisa nutrir-se para funcionar bem, então fica melhor se eu comer alguma fruta ou fazer uma refeição balanceada. Outro exemplo: aquela mobília é muito bonita, mas estou economizando dinheiro para pagar aquela conta, então ela não é uma prioridade agora. Eu sei que é da minha responsabilidade a dívida que eu contrai voluntariamente, alguém trabalhou e vendeu-me seu trabalho (ou aquilo que adquiriu com seu trabalho) e é justo que eu cumpra com o combinado. Estas situações são cotidianas e, quando passamos por elas ou semelhantes, não julgamos que estamos nos enganando, mentindo para nós mesmos. Decidimos o que fazemos pela inteligência, considerando o que precisamos de fato, e o que é certo e o que nos beneficia concretamente - para além do que pareça agradável.


Afinal, se eu realmente quero fazer o correto, se isso for um valor inegociável, por que me torno um mentiroso caso eu me recuse a fazer o errado, mesmo se ele me parecesse mais fácil e cômodo, ou mais prazeroso? Não me torno um mentiroso. Ajo sinceramente. Apenas admito a realidade de que nem todo desejo é uma prioridade, nem todo sentimento é sinal inequívoco do que beneficia concretamente a mim e aos outros. Preciso pensar sobre as situações da vida, passá-las pelo crivo da justiça, da verdade, dos valores em geral - os quais fazem parte também de mim - e, então, decidir. 


Este entendimento muda a equação entre desejos, sentimentos e normas. Na realidade, os desejos e os sentimentos são expressão do estado de espírito - ou do estado psicológico, segundo preferem alguns materialistas. De todo modo, se desgovernados, os desejos e os sentimentos podem levar à destruição de si e dos outros, desde um grau mais abstrato até um mais concreto. Por sua vez, as normas podem servir de ordenação à prática do bem, obrigando-nos a evitar o que nos prejudica e a buscar o que nos beneficia. Elas funcionam como incentivo à ação - mesmo quando não ameaçam com a punição, mas restringem-se a obrigar ao dever ¹. 


Desejos e sentimentos necessitam de disciplina e conversão, que parecem violência e coerção à sinceridade romântica. Contudo, para a sinceridade integral - que considera a pessoa inteira -, elas despertam a consciência para a escravidão que as paixões desenfreadas podem produzir e a conseqüente destruição da pessoa. Afinal, de que vale abandonar um regra apenas em razão do tédio ou do desconforto se isso significa prejudicar concretamente a si mesmo ou a outra pessoa? Este egoísmo que se orienta pela satisfação dos desejos torna-se cego e não vê que, em nome da emoção, põe a perder a si e aos outros. Por essa perspectiva, ordenação, disciplina e conversão são vias de libertação do homem. Livre, o homem reconecta-se a si mesmo, à sua parte espiritual, sem isso implicar no aniquilamento do corpo. Trata-se de um integração entre a parte sensível e a parte intelectual, coordenando-as de acordo com a natureza de cada uma. A parte sensível pode apresentar à consciência o estado de espírito - o que eu sinto em relação a isto ou aquilo. A parte intelectual pode apresentar à consciência a operação e a ordem das coisas - isto age de tal modo, suas causas são estas, seus efeitos são aqueles. É possível que isto pareça-me agradável, porém sua operação e seus efeitos são tais que prejudicam concretamente a mim ou a outros. Devo, então, evitar isto. Do contrário, este outro parece-me desagradável, mas vejo que sua operação e seus efeitos beneficiam concretamente a mim ou a outros. Devo, então, buscá-lo. 

Desse modo, querer o bem de si e de outros exige renúncias e sacrifícios certamente, pois é necessário educar os desejos, mas o resultado é a paz, em contrapartida. A pessoa se torna íntegra, os conflitos interiores dão lugar à celebração da paz entre o real e o desejável. As paixões são governadas pela inteligência e educadas para favorecer a apreciação do que é bom, correto, justo, nobre. 

A sinceridade romântica, no afã de criar normas adequadas aos desejos e sentimentos, faz com que as normas de ação tornam-se cada vez mais egocêntricas e imaginativas, conseqüentemente excludentes e contraditórias com a vivência compartilhada, e dissociadas das coisas.  

Diferentemente, a sinceridade integral significa a força de agir tal como se pensa e se quer, corrigindo-se de acordo com a verdade e com o bem concretos. Além do governo das paixões, e
la permite que eu seja sincero e, ao mesmo tempo, aberto ao outro, coexistindo em harmonia. Pois não se trata do choque entre vários egos auto-interessados e isolados dentro de realidades incomunicáveis, mas da ligação harmônica de vários egos individuais a uma realidade compartilhada - e esta ligação ao real se viabiliza apenas por essa sinceridade integral. O acesso a essa realidade compartilhada e a aceitação das normas de ação com base nela permitem que as mesmas normas não se fechem dentro dos haréns da imaginação nem, multiplicando-se contraditoriamente, gerem conflitos insanáveis entre as pessoas - solucionáveis, em último caso, apenas pela força do Estado. Contudo, no extremo da sinceridade romântica, há de se temer que, fomentando a ação dissociada da inteligência e do real, baseada apenas na satisfação do desejo, os homens tornem-se bestas famintas que reagem ao prazer e à dor, que se mantém sob controle pelo entorpecimento ou pelo medo da punição. Neste caso, a população se reduz a ser massa de manobra dos governantes ou poderosos. Serão homens e mulheres que crêem fazer exatamente o que desejam, mas que, na verdade, agem seguindo as migalhas de pão que os dirigentes deixam. A cada pedacinho de pão crêem obter o que desejam, mas a cada passo que dão dirigem-se a objetivos que não suspeitam. Poderiam, noutra circunstância, ver o destino para o qual são guiados. Entretanto,  incapacidade de acessar pela inteligência ao real compartilhado leva, na prática, à falta de comunicação. O logos (o discurso) é inútil. Além da comunicação e do discurso, falta a remissão da palavra às coisas e sua ordem. Os nomes não se conectam com a vivência. Se não há comunicação, nem discurso, nem significação, não há como ver o real ou elaborá-lo dentro duma ordem intelectual. A população fica refém, na verdade, do discurso oficial - que joga com imagens e chavões, apelos emocionais. Ele não está comprometido com o real, nem poderá assim estar comprometido com o bem comum. 

Essas considerações mostram os efeitos mais amplos da sinceridade romântica e da sinceridade integral. Nelas se vê que a sinceridade integral, além de trabalhar o governo de si próprio, obstaculiza os projetos de poder que prevêem a manipulação do povo dócil. O cuidado a se tomar, todavia, é o de impedir que a própria realidade compartilhada e as normas morais sejam intitucionalizadas pelo Estado. A descoberta da realidade e das normas deve permanecer dentro da sinceridade integral, sendo individual e na relação de uma pessoa com outra.  

_____________________       

1. As normas, divididas entre morais e legais, obrigam por razões diversas. As normas morais, transmitidas de pessoa a pessoa na família, na religião ou no convívio comunitário, obrigam pelo respeito às autoridades, pelos laços afetivos, pela consideração dos benefícios ou prejuízos que se seguem concretamente das ações, ou pela expectativa de recompensa nesta ou noutra vida. As normas legais obrigam pela força do Estado, na forma do policiamento ou das punições previstas em lei. Evidentemente, as normas passam a ser opressoras quando as normas legais tentam tomar o lugar das normas morais - o que significa a institucionalização de toda ação particular e a consequente criminalização de toda conduta contrária -, ou quando o medo da punição substitui o desejo pela felicidade particular e pelo bem comum. 

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