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Meditação

Aonde iremos? Só tu, Senhor, tens palavra de vida eterna.

Em tempo de provação, o fogo que molda o metal continua o mesmo, o que muda é a peça moldada, que fica cansada depois de sofrer muitas pancadas, depois de aquecer-se muitas vezes e outras muitas esfriar-se. A peça grita, chora, parece que vai se desfazer. Ela resiste, porém. Por que suporta tanto sofrimento? — perguntarão alguns. Como o faz? — interrogarão outros. No entanto, o que a todos incomoda, que desperta ansiedade — até certo receio —, é não saber quais são as chances de a peça se perder, de ela se partir e não ter mais conserto. Será a sua morte?

Na agitação destas perguntas, quando a esperança falha e apenas se vê escuridão, quando no peito jaz cansado um coração ferido de derrotas, neste momento, convido o leitor a retornar à pessoa de Maria Madalena. Pouco se sabe a respeito dela. Que foi discípula de Jesus, que o seguiu até o monte Calvário e a crucifixão, que foi a primeira a vê-lo ressuscitado. A especulação acrescenta à lista que ela foi a adúltera, salva do apedrejamento, e a mulher que, tendo adentrado na casa de um fariseu, lavou os pés do Senhor com lágrimas de penitência e enxugou-lhes com os cabelos.

Se foi ela, que transformação! Penso nas cenas de sua vida. Suponho que fosse casada. Insatisfeita com o marido, ou machucada com os maus tratos, ou atraída para uma armadilha vil, tantas podem ser as razões por que se envolveu em um adultério. Fosse o que fosse, ela não estava bem com sua realidade, havia uma tristeza que queria chorar e que ficou mais amarga com o flagrante da traição, e com os dedos de acusação, e com as palavras de maldição.

Certamente, quando ela olhou para as mãos estendidas e armadas de pedregulhos, o medo de morrer fez tremer-lhe a carne — muito mais, talvez, do que o pressentimento das pedras lhe cortando a pele e lhe esmagando os ossos (só a nossa geração mimada e sensual teme mais à dor do que ao fim irrevogável). No entanto, arrisco opinar que ela sofreu, naquele momento dramático, na iminência da morte, muito mais em razão da solidão e da culpa. Quem estava com ela? Quem enxergava o seu arrependimento? E a pergunta mais secreta, que as emoções embaçavam, mas que a consciência entrevia com um olhar assustado e, ainda assim, obsessivo: o que ela poderia fazer, ou dar de seu, para reparar tudo, voltar atrás, reencontrar a vida?

Mas ela não encontrava a resposta. À sua volta, em toda parte, estavam os acusadores. E quem podia atravessar a aparência de mulher promíscua e saber, sem suposições sentimentalistas e discursos baratos, que ela não agiu por malícia, mas sentia, sim, falta de amor? É possível que ela estivesse inclinada a cair nas paixões, que cedesse às primeiras palavras galanteadoras, que ficasse cativa das mais efêmeras amostras de carinho e interesse. Mas impunha-se a ela, contra todas as contingências, um desejo que adivinhava a existência de um amor real, despojado daquelas aparências fáceis, escondido, espiritual, o mais concreto.

Esse amor subsistiria a todas as mudanças e provas, resistiria às flutuações do humor e às inconstâncias da sorte, assim como um rochedo aos golpes do mar bravio, na tempestade. Não se desfaria por qualquer novo encanto ou desencanto. Manter-se-ia um, inteiro, firme nas bases de um só propósito: o bem um do outro. E teria de ser gratuito, porque ela, Madelena, bem compreendia a miséria sua, de pecadora. Se dependesse de beleza, o amor duraria até que a mulher perdesse a pele limpa e lisa, e as formas definidas e nutridas. Se dependesse de riqueza, poderia ser roubado por invejosos ou ser destruído pelas traças. Se dependesse da fama — que péssimo! —, desapareceria pelos ares na mesma fluidez e velocidade das fofocas. Madalena queria um amor gratuito, porque ela não tinha como justificá-lo. O que parecia possuir não ficava consigo, pouco adiantaria uma ordem sua. E o que aparecia em algum instante, sumiria algum dia. A pouca virtude e graça da sua alma vacilariam e perderiam o brilho, eventualmente. Nem podia reivindicar a singularidade da sua existência: — "Ama-me porque sou única, há apenas eu igual a mim!" — Não, não podia! Porque ela própria não se conhecia. Perdera-se. Fizera tantas concessões aos outros para conseguir algum olhar de atenção que já não agia mais por si mesma, não tinha presente a si a consciência, não se recordava mais do que era importante e único para si, não se incomodava realmente de ser ou não ser Madalena — talvez, por isso, nem doessem na sua alma os insultos dirigidos à pessoa que ela era, mas doía-lhe a rejeição dos outros, depois de tantas renúncias!, após tanto negar-se e rejeitar-se para ser outra qualquer!, e eles negavam-se a reconhecê-la como igual a eles. 

Então, no momento do tribunal popular, Madalena, cercada de homens, sofria só e vazia, implorando que alguém a visse e lhe desse um crédito infinito, de amá-la ainda que ela fosse uma nulidade. 

Foi quando alguém interveio a seu favor. À distância Jesus a notou, aproximou-se, viu-a. Ele se agachou para escrever a Lei eterna no pó e, assim abaixado, Deus dirigiu os olhos para ela e amou-a por inteiro, sem nada pedir em troca. O Cristo disse à penitente: "Vai e não peques mais" e, assim, em vez de um pedido com um proveito para si, Ele pede que ela não desista, que ela lute pela própria vida, pelo próprio bem, pela própria salvação. 

Não podemos mensurar o tempo que ela levou para compreender o que tinha escutado — até que toda a cena do seu Coliseu tivesse ficado para trás e já não fosse um sonho, nem uma lembrança distante. Se poucos dias, se muitos, o fato é que se decidiu, e a sua decisão caiu como um raio e partiu-lhe a história. 

Ela tomou o que tinha, suas jóias, perfumes, roupas caras, vendeu tudo e comprou perfume do mais suave e raro, do jeito como queria a odor da vida nova. E assim, resoluta, andou em procissão, gemendo e chorando, angustiada com esta dúvida: "Será...? Será que ele aceitará o que tenho para dar? Mas não é nada. Ao menos, nada que ele já não tenha. Poderá me amar, mesmo depois de tudo? Tudo o que fiz...". 

De repente, a determinação vacila. Ela pára. Dá um passo. Parece voltar para trás. Pensa e repensa cada detalhe, cada memória. Parece contar para si a história de seus erros. Desanima. Relembra a palavra que uma vez sua mãe lhe disse, tão terna e tão misericordiosa, e anima-se. Mas "e se...?". 

Não! Não! Chega! Mantém-se firme. Não desistirá agora. É tudo ou nada. Não se acovardará. Para os outros, ela fugiu de si para ser o que eles queriam e acabou perdendo-se. Então, se fosse para ser encontrada, não havia saída senão admitir a verdade, aceitar-se, entregar-se com todas as graças e as dívidas, virtudes e fraquezas, ela tal como era, sem fingimentos, sem máscaras, ela diante daquele que foi o único a enxergá-la. E foi.

Ao escutar uma conversa na rua, descobriu que Ele estava em casa de um fariseu. Seria julgada mais uma vez, com certeza. Podia sentir, desde a nuca, o ardor daquele olhar de doutor da lei, que sabia dos seus pecados e que não hesitaria, se pudesse, de jogá-la ao fogo que nunca se apaga. Ainda assim, ela não se deteve. Caminhou até a casa, nem bateu à porta e já entrou, jogou-se aos pés da Promessa, pôs toda a verdade às claras, humilhou-se, de fato. Quereria tornar-se cinzas. Mas não se enganem! Não era por que desistisse de si. Pela primeira vez em muito tempo teve a coragem de assumir quem era e, por trás daqueles joelhos prostrados e lágrimas caindo, estava a confissão: "Eu me entreguei a estranhos enquanto fugia de mim e acabei me perdendo. Agora, venho, ferida e despida de qualquer favor, para perguntar se posso amar-te. Aceitas o meu amor, assim pobre, assim tão pouco, quase sujo? Eu o dou todo e não peço nada em troca senão que me ames de volta, ainda que pouco, desde que seja real." O coração dilatava-se, jorrava, derramava-se sem reservas. 

O Eterno se moveu. Nem a lei dos juízes pôde compreender o que se passou ali. Os filósofos se confundiriam e disputariam pelas regras da não-contradição. A Lei incriada, com seus átrios dilatando-se e contraindo, aceitou o amor de Madalena, e não só aceitou, como lhe retribuiu. Sim! "A quem muito ama, muito lhe será perdoado". Esta é a sentença! 

Na Cruz, bastava uma só gota do Seu sangue para redimir toda a humanidade, pagar todos os pecados dos homens de todos os séculos, dos mais hediondos aos menos graves, dos que bradam a vingança divina aos que apenas arrefecem o fogo da caridade. Se se arrependessem os homens, se se arrependessem como Madalena, sem exigência de perfeição, mas apenas de entrega total. Ah! Uma só gota para pagar o crime de Caim, as abominações de Sodoma e Gomorra, o adultério de Davi, a idolatria de Salomão, os infanticídios de Herodes, até as guerras recentes, os assassinatos em nome da paz mundana, a ganância dos homens que levam outros à morte na miséria, as impurezas mais infames que se alastram pelo mundo ferindo da infância à velhice. Uma só gota para pagar os inúmeros pecados e ofensas, ingratidões e frieza, desde os primeiros anos de nossas vidas até o último suspiro.

Mas não! Ele derramou até a última gota, até aniquilar totalmente Sua carne e secar a medula dos Seus ossos.

Ânimo, pois, pecadores! Não somos metal descartado pelo artífice. No fogo do Seu amor, somos purificados e forjados. Não seremos deixados ao pó e às trevas. Pela Divina Caridade, voltaremos ao fulgor da vida. Coragem! Assim como Maria Madalena. Pois o amor de Deus é total, para todos e para sempre.  


Revisado e reeditado em jan. 2018.

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