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Por que ler "As quinze primeiras vidas de Harry August", de Clair North?

     Harry August está a beira da morte quando uma criança se aproxima de sua cama e lhe diz: "O mundo está acabando." Ele responde sem perturbação: "Ora, ele está sempre acabando." Ao que a menina corrige, com ar grave: "Mas está acabando cada vez mais cedo." Esse diálogo tão estranho ganha uma explicação logo no início da narrativa: Harry, a criança e muitos outros não morrem simplesmente, mas retornam com a memória intacta ao ponto de partida, o dia de seus respectivos nascimentos, na longa linha histórica que vai desde a mais remota Antiguidade até certo dia no futuro. Assim, eles se lembram das vidas de outras vezes e sabem sobre os grandes eventos por vir, enquanto o restante da população, composto de "lineares", não se recorda e experimenta tudo como se fosse a primeira vez. Mas nem tudo está determinado. Se Harry quiser, pode reunir as condições necessárias para influenciar os grandes eventos e, desse modo, mudar o rumo da história. Mas, se ele e outros do seu tipo fizerem isso em seu tempo, afetarão a vida dos outros "ouroboros" do futuro, que até poderão deixar de existir. Em face desse cenário, a maior parte dos não-lineares se organiza para aproveitar o "eterno retorno" ao seu bel-prazer desde que por suas ações não afete demasiadamente os não-lineares que vivem nos tempos seguintes. Contudo, dado o diálogo inicial, sabemos que alguém não está observando esse combinado, e as civilizações humanas, que acabam em todas as versões da história, estão ruindo cada vez mais cedo. Quem é o responsável por isso? E o que Harry August pode fazer a respeito?    
     Após a leitura do livro, não posso deixar de pensar em seu potencial  para a formação do imaginário. A história é criativa e tem elementos interessantes, que talvez agradem fãs de ficção científica, porém, mesmo com tanto esforço e tantas informações, a narrativa repete com novos adereços uma estrutura já banalizada. Ela recorre aos artifícios comuns da literatura juvenil mais recente, da qual Harry Potter se tornou um arquétipo. Fantasia no mundo real, personagem que se sente deslocado da ordem comunitária e que descobre pertencer a uma raça especial, escondida atrás das banalidades da gente normal. A pessoa, que antes não via nem seu valor, encontra-se subitamente no centro de um conflito de escala global e cabe a ela decidir o desfecho de tudo, mas apenas se conseguir resolver seus problemas emocionais ou afetivos. Esses elementos se misturam com outro bem corrente, o mundo pós-apocalíptico, mas apenas no aspecto da destruição que se segue da ação humana sobre a natureza (lugar comum das discussões inteligentes atuais).
     Na caracterização da personagem principal, noto algumas referências ao pensamento de Nietzsche. Viver inúmeras vezes os mesmos eventos (ao menos os da infância); o vazio deixado pela ciência moderna que mata Deus; o sujeito que age além do bem e do mal, sem as restrições morais que só se aplicam aos mortais "lineares"... essas são algumas possíveis inspirações da autora. Há o tema do tédio, do sentido da vida, da resignação diante do que não se é capaz de mudar, do desastre que se segue de grandes ideais de revolução... no fim, Harry August é um cínico, não tem convicções e olha cansado para uma sucessão monótona de alegrias e dores já conhecidas. Ele não se deteriora completamente em um niilista, nem se entrega à vida destrutiva de seus semelhantes, os quais administram a felicidade com doses de emoções mais fortes e, com alguma sorte, de uma ou outra surpresa. Na verdade, Harry ainda tem curiosidade e grande interesse em si mesmo, de saber "o que" ele é.
     A história trata as convicções com suspeita, até sarcasmo; desacredita a moral e o poder redentor do amor ou, pelo menos, não explora suas possibilidades na busca de resignificar o sofrimento. O amor está reduzido à afeição física e à dependência emocional, tanto que o vilão da história, com atitudes contraditórias com respeito a esse ponto, chega a considerar o sexo apenas um tipo de terapia para manter o equilíbrio psicológico. Em sentido bíblico, diríamos que não é necessário haver "conhecimento" entre as almas que se tocam tão intimamente. Basta um usar o outro para obter dopamina e aliviar a tensão que está valendo. O arrependimento e a culpa são deformados pela mentira e pela ambição: o pedido de desculpas do assassinato para a vítima não revela conflito interior nem arrependimento, ele apenas põe em descrédito todos os sentimentos que o criminoso alega ter e todas as palavras que profere. Somam-se ao quadro até aqui desenhado a afetividade sempre interesseira ou erotizada, as duas únicas realidades possíveis por trás da palavra amizade nesse universo ficcional.
     Por essas razões, embora o livro seja bem escrito e tenha um argumento instigante (até um fim surpreendente), é do começo ao fim um péssimo formador da imaginação. Não obstante, a leitura pode ser proveitosa aos interessados em encontrar um retrato bem aproximado das novas gerações urbanas, no Ocidente do século XXI, que se entregam a uma rotina alienante, que lhes rouba a experiência significativa do ordinário e deixa-os ansiosos pelo frescor e intensidade das novidades e surpresas, cada vez mais difíceis de conseguir.        

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