Pular para o conteúdo principal

Não está fácil para ninguém

Popularizou-se a frase "não está fácil para ninguém" para expressar a dificuldade de arrumar emprego, ou manter-se em um, ou para falar das muitas dívidas e da falta de dinheiro para pagá-las. O povo diz isso, mas não é como se estivesse mais fácil antes. Problemas sempre existiram e a memória, quando consultada, pode servir de fiel testemunha. Mesmo o que hoje parece uma atividade tranqüila para nós exigiu-nos muito esforço e trabalho algum dia, como, por exemplo, andar, falar, fazer as operações matemáticas da tabuada. Acontece que a facilidade e a dificuldade não dependem tanto do número de desafios ou da complexidade deles, porém dependem muito mais do vigor com o qual os enfrentamos. O mesmo obstáculo pode obviamente ser mais desafiador para uns do que para outros,  mas o que não é tão óbvio é que, não obstante demandar mais força de alguns, o obstáculo pode parecer a esses mais fácil do que a outros. A diferença está na grandeza de alma e na generosidade dos que são desafiados. Passar por uma montanha pode ser muito difícil para um gigante entediado, enquanto esfarelar a mesma montanha em milhares de pedacinhos pode não representar grande esforço para uma formiga bem-humorada.
Mas se a facilidade não depende de quantidade ou de complexidade, não é tão verdadeiro assumir que não dependa do antes e do depois. Todavia, como eu disse, não é como se o passado fosse mais fácil e o presente mais difícil. Minha hipótese é que assim nos parece porque éramos mais jovens e nossa juventude vibrava no corpo, não tanto porque os músculos fossem recém-fabricados, porém tanto mais porque éramos generosos e entusiasmados na alma. Amávamos viver e não nos importava gastar as forças que a dureza da realidade cobrava. Crescemos, vimos o corpo mudar - envelhecer - e, ao invés de crescer em generosidade, ficamos avarentos sob a desculpa de "poupar as energias". Caímos na conversa de que, morrendo o corpo, morre a alma.
Nossos pais estavam corretos em acreditar na eternidade, pois puderam continuar a viver mesmo quando a corrupção do mundo e o enfraquecimento dos ossos diziam que eles deviam morrer. Puderam ainda ter os olhos disponíveis para ver nascer seus filhos, sobrinhos e netos, e acreditavam que a terra onde pisavam ainda era fértil, frutificava e valia a pena ser semeada. Não lhes parecia desperdício lutar e desgastar-se. Sob o sol jaziam o céu de esperanças e o terreno das oportunidades.
Como eles cresceram, mas não ficaram avarentos com a vida, eles se tornaram sábios e bons administradores. Aprenderam a fazer mais com menos e a resolver muito com pouco. Conseguiram isso porque foram generosos, investiram o coração no trabalho, nos estudos, na religião e na família, sem a preocupação de guardar um pouco de si mesmos. Pois a economia espiritual é diferente da economia material. Conservam-se os fósforos deixando de acendê-los. Queima-se um uma única vez e não queimará de novo. Entretanto a alma só se esgota quando deixa de transbordar. Quando ela quer salvar a si mesma, perde-se. Por isso os sábios condenavam o egoísmo, a avareza, a preguiça, a gula, a luxúria, entre os outros vícios. Pois não basta a aparência de liberalidade, conquanto ainda se queira reter algo de si para si. Doar-se é investir lá fora, nos outros.
Assim, ao retomar o assunto da introdução, devemos tremer como se estivéssemos diante de um alerta de incêndio e seca. Se é verdade que "não está fácil para ninguém", antes de isso significar que a realidade apresenta mais complicações, significa que nós estamos mais mesquinhos. E somos mesquinhos cansados, que não gastam as forças com os desafios da vida, mas que não fazem objeção de as poupar e desperdiçar com as distrações da morte.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Plano de estudo

Este texto é de autoria duvidosa. Muitos o atribuem a Santo Tomás de Aquino. Embora trabalhasse com a possibilidade de ele não ser da autoria do santo, o Pe. Sertillanges, grande tomista do século XX, inspirou-se nele para escrever seu livro "A vida intelectual", que é também excelente, recomendadíssimo. No Brasil, o Prof. Lauand acredita na sua autenticidade ( aqui ). Pelo sim, pelo não, todos concordam que o texto traz preciosos conselhos e que eles harmonizam-se perfeitamente ao espírito disciplinado, estudioso e ascético do Doutor Angélico. Eu o traduzi com base na edição eletrônica disponível em "Corpus Thomisticum". Sobre o modo de estudar Caríssimo João, em Cristo, Porque me inquiriste sobre o jeito como deves estudar para adquirir os tesouros do conhecimento, ofereço-te um plano: (1) que pelos pequenos rios, e não imediatamente em pleno mar, escolhas adentrar [na ciência], pois é preciso avançar do fácil em direção ao difícil. Este é, portanto, o m...

Saramago e seu ateísmo de manual

Como nos informa o jornal Folha de São Paulo, José Saramago publica esta semana o romance "Caim", definido pelo próprio autor como um livro destinado a fazer uma crítica às religiões judaico-cristãs. Pelo que informa a reportagem, Saramago escolheu como seu porta-voz o personagem bíblico Caim; no caso, Caim (que matou o irmão e foi condenado a vagar errante pelo mundo) viaja pelos tempos e lugares do Antigo Testamento, para testemunhar as atitudes de um Deus vingativo, castigador dos bons, carrancudo, etc. Saramago não é original nesse ponto. Esse tipo de visão é típica dos manuais ateus mais superficiais, ou melhor, é uma visão própria de pessoas que não se dedicam a ler a Bíblia com atenção, mas, sim, com certa pressa, aquela pressa dos "livres pensadores" — preocupados demais com os assuntos mais racionais e relevantes. Saramago diz a respeito da Bíblia: " À Bíblia eu chamaria antes um manual de maus costumes. Não conheço nenhum outro livro em que se ma...

É mister buscar a reconciliação

Escrevi o texto abaixo logo após o fim das eleições de 2018 e publiquei-o no meu perfil do Facebook. *   *   *       A s eleições estão decididas e, acabada a guerra de memes, eu gostaria de falar aos jovens da minha geração e aos mais jovens que votaram pela primeira vez. O assunto é reconciliação com a família, e todos devem imaginar o porquê. Nas últimas semanas, eu vi incontáveis insultos de filhos contra pais, e destes também contra seus rebentos, como se todos estivessem em um Casos de Família na versão 200 caracteres. Foi doloroso assistir a essa briga toda. Como a minha perspectiva é a do filho cabeça-dura, é com dureza que desejo me dirigir às cabeças que nasceram de outras, sem reconhecer devidamente esse fato.      Começo com um conselho que bem poderia ter saído de nossa avó enquanto ela mexia com alguma coisa no fogão: Quanto mais tentamos rejeitar nossos pais, tanto mais nos tornamos o que supostamente odiamos ne...