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Saramago e seu ateísmo de manual

Como nos informa o jornal Folha de São Paulo, José Saramago publica esta semana o romance "Caim", definido pelo próprio autor como um livro destinado a fazer uma crítica às religiões judaico-cristãs. Pelo que informa a reportagem, Saramago escolheu como seu porta-voz o personagem bíblico Caim; no caso, Caim (que matou o irmão e foi condenado a vagar errante pelo mundo) viaja pelos tempos e lugares do Antigo Testamento, para testemunhar as atitudes de um Deus vingativo, castigador dos bons, carrancudo, etc.

Saramago não é original nesse ponto. Esse tipo de visão é típica dos manuais ateus mais superficiais, ou melhor, é uma visão própria de pessoas que não se dedicam a ler a Bíblia com atenção, mas, sim, com certa pressa, aquela pressa dos "livres pensadores" — preocupados demais com os assuntos mais racionais e relevantes.

Saramago diz a respeito da Bíblia: " À Bíblia eu chamaria antes um manual de maus costumes. Não conheço nenhum outro livro em que se mate tanto, em que a crueldade seja norma de comportamento e ato quase natural".

Ao que parece, o autor lusitano reproduz velhos argumentos para desqualificar a Bíblia ou as religiões judaico-cristãs. Toma os eventos do Antigo Testamento como tendo, de fato, acontecido do modo como foi descrito e analisa, pelo boca de Caim, os acontecimentos sob a perpectiva do "moralista". Saramago estranha que a Bíblia relate tantos casos de assassinato, traição, guerra, mentira, vingança e destruição? Bem, o que posso dizer? Esta é a condição da humanidade.

É estranho o modo como Saramago apresenta o seu persongem — pode isso até ser um pecado cometido pela reportagem —, mas, de qualquer modo, Caim soa como um fatricida, que é também moralista. Ele pode, por sua inveja, matar seu irmão, mas Deus, por sua justiça, não pode corrigir o homem.

Algumas vozes críticas poderiam ainda dizer: mas Deus rejeitou a oferta de Caim; se Ele fosse tão bom, acolheria aquilo que Caim tinha para oferecer. Isso é no mínimo engraçado. Não sou nenhum conhecedor profundo de teologia (não obstante, eu ache que René Girard apresenta uma leitura muito esclarecedora sobre esse ponto), mas sei de algumas das reivindições que estão em voga. Duas delas, antitéticas, são: ou deve haver um melhor dentre os outros, para promover a grandiosidade do homem; ou não deve haver um melhor, para não fomentar a desigualdade. Se Saramago for adepto do marxismo, penso que ele ficaria com a segunda opção.

Mas, o fato é que o cristianismo trabalha com as duas. Deus escolhe o melhor para promover o que há de melhor entre os homens, mas, ao mesmo tempo, Deus escolhe o pior dos homens para que, elevando-o, eleve toda a humanidade e, assim, possa mostrar o melhor que o homem é capaz — sobre esse ponto, Chesterton, em Ortodoxia, tem uma defesa muito sagaz e esclarecedora.

A questão que Saramago talvez não veja é que as histórias narradas pela Bíblia são histórias de sangue e de violência, o mesmo sangue e violência que correm no interior do homem e Deus é aquele que busca resgatar o homem de sua condição. Mas esse resgate não é simples. Diante da injustiça, Deus precisa mostrar a gravidade dos erros humanos, mas, ao mesmo tempo, movido por seu amor, Deus deseja que os homens deixem sua condição de "animal homem" para ser o "deus homem". Como fazer isso? Diante da dureza do coração humano, punir a ação do homem com fogo. Diante de seu arrependimento, perdoá-lo e acolhe-lo como filho seu. Diante de sua rebeldia, mostrar pela espada e pela chama o destino que o aguarda. Diante de sua docilidade, apresentar a cruz que ele precisa carregar para provar sua grandiosidade pela experiência da própria miséria.

Imagino que a Bíblia choque pessoas como Saramago porque, no fim de tantos crimes, sangue e mentira, Deus acolhe o homem. Deus morreu por causa desse verme que é o homem? A resposta é sim e isso significa amor. Eis aqui uma palavra pouco entendida entre as pessoas do meu tempo. O amor cristão, diferente daquele amor romântico puramente sentimental, significa ter a disposição de sacrificar a si mesmo pelo bem do outro. O bem das pessoas, ao contrário do se pensa comumente hoje, não é cada um fazer o que bem entende para alcançar sua concepção de felicidade. O bem das pessoas é a manifestação de sua grandiosidade, é aquela perfeição de vida que abraça o mundo com um suspiro causado pela sede da eternidade. O bem das pessoas é a santidade.

O cristianismo olha para o homem e se entristece por ver um titã reduzido a um farrapo e tudo porque o homem não conseguiu manter os olhos naquilo que é perfeito, grandioso, belo, bom, prazeroso, honroso... não, o homem desviou os seus olhos para as futilidades. O homem sentiu inveja de sua própria grandiosidade e, por isso, tornou-se o mais inferior e decrépito dentre os existentes. Penso que isso se deve aos homens se recusarem a aceitar ver, uns nos outros, a expressão da grandiosidade divina. Perco eu alguma coisa se o outro resplandecer alguma de suas perfeições? Também eu não sou humano? Também eu não sou grandioso?

Ai, ai, ai. Comecei este blog em tom mais solene e, não obstante, vejo-me, agora, dando-me ao trabalho de comentar os preconceitos típicos do ateísmo de manual. Será que isso se repetirá mais vezes?

Coisas a se pensar sem culpa.

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