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Alvorecer do Mistério

No princípio, os homens disseram “ser” e o universo do pensamento foi criado. Eles pensaram e esse universo encheu-se de luz. Essa luz expandiu-se, fertilizando o que tocava, e germinavam imagens, ideias, conceitos e ordem. Os homens firmaram tudo sobre a verdade: os mares da especulação, as vegetações conceituais e a vida e a felicidade dos espíritos. Eles contemplaram essas coisas e eles viram que eram boas.

Satisfeitos, descansaram. Mas, quando acharam que tudo estava pronto, eis que surgiu um sinal: uma dama vestida de sol, radiante, viva, aura vibrante de tons gregos, romanos, árabes, judeus, cristãos... da sua boca saíram oráculos para todos os tempos. Apontou para o horizonte da luz humana e disse: “Tudo o que vos falo é fruto do mistério da realidade. Contemplai esse mistério e sede dóceis a vossa luz. Olhai o mundo com olhos de fogo e feri a vossa dúvida com a lâmina de vossa inteligência!”. Reverenciando tão formosa aparição, aqueles homens juraram seu amor a tão esplendida majestade, renunciaram a mediocridade de suas intenções e abraçaram os mais elevados ditames de sua amada: tornaram-se filósofos.

Bem, passaram-se os tempos. Como diria o poeta lusitano, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. O fato é que a paixão passa e, fora a virtude teologal dos filósofos medievais, o amor é apenas uma palavra para evocar os lamentos do poeta e os favores das donzelas. Triste? Chocante? Absurdo?

Sofia, a antiga fortaleza racional, a passada rainha do conhecimento, teve longo matrimônio com a humanidade. Ela ofereceu seu auxílio; deu muitas filhas: as ciências; e até adaptou-se aos interesses de seus amantes, e isso foi o seu cárcere, sua sarjeta e sua ruína. Seus filósofos tinham se cansado da primitiva luz que iluminava o mistério do mundo. Eles tinham se acovardado diante da infinitude do coração de Sofia. Sentiram-se sufocados pela dúvida e pela liberdade.

Então, eles a aprisionaram, amarraram-na em sentenças truncadas e a ataram a boca com as estruturas a serem analisadas. Os até então filósofos cavaram um abismo em torno dela, um imenso buraco de fenômenos, coisas-em-si e véus e vendas. Sofia se tornava um animal de laboratório, enjaulada dentro cálculos ou, mesmo, de sistemas, atada ao nome de cada um de seus antigos devotos e, agora, novos algozes. Resignada, ela viu a luz esconder-se entre as terras e montes onde, uma vez, havia florido seus encantos e filhas. Os homens ceifaram a terra e levaram as ciências para longe de sua mãe.

Abateu-se escuridão sobre o pensamento. Dúvida. Angústia. Morte. Histeria. Loucura. Nada. Todavia, não choreis pelos infelizes dessa terra devastada pela dúvida e pela vaidade do deus homem... Não, não lamenteis... Os padecimentos são queridos pelas suas vítimas, que esquecidas dos banquetes de outrora, engalfinham-se pelas migalhas e, cegamente, propagam os ecos dos primórdios, cavam as terras por eles desertificadas atrás de novo manancial de verdade. Mas o que encontram é terra e seca - no melhor dos casos, uma lodosa mistura de todas as contradições.

O que aconteceu com tão majestosas e hominídeas divindades? Algumas morreram e as que restaram, cultuaram seus mortos, como a ruminar as letras embalsamadas pelo tempo, múmias do que já tinha sido pensamento vivo: hodie mortuus intelectuus. O que antes era colheita da fecundidade racional, nesta hora é devastação.

O tempo passou para Sofia. Ela perdeu seu brilho e juventude. Ela sucumbiu à multidão das opiniões, de modo que não mais leva à sabedoria - não leva a mais nada. Ela não serve para nada. A amável Sofia, a filo Sofia, envelheceu cadavericamente.

Aconteceu de virar moda falar dela, sua palavra virou perfumaria para a exibição de pedantes erudições e de pensamentos falidos. A mídia até noticiou a sua história. Mas Sofia já não era com antes. Ela ficou resmungona, presa ao passado (quem a suporta quando começa a falar de seus feitos?), a cada momento à espera de sua morte, em tudo dependendo da ajuda dos outros, queixosa de suas inumeráveis doenças e feita a deixar-se perder entre devaneios e delírios.

Ó dama desventurada, o que mais te reservam os deuses que te criaram? Tu não és mais reconhecível, nem mesmo te restam as sombras.

Faz-se silêncio assombroso.

Os céus e os montes agacham-se e voltam seus ouvidos para aquela esfarrapada criatura. Eis que Sofia levanta seu olhar e, por um momento, enchem-lhe a face tênues luzes de seu primitivo brilho, e diz: “Quem tem ouvidos, ouça o que tem a dizer o espírito da filosofia aos bem-aventurados, aos pensadores infinitamente vivos! Já chegou a hora e, não se pode mais adiar, de contemplar a imensidão da realidade e dela beber do néctar da vida! Aquele que tiver coragem, que renuncie o medo de sua dúvida, traga-a nos ombros e salte o abismo que os homens cavaram. Que olhe o mundo com olhos de fogo e perscrute as essências tal como a espada que transpassa o coração do inimigo. O que tem coragem, pensa e, ao pensar, salta o abismo e, ao saltar, assume o risco da vida e da morte, por amor do mistério de que falo a todos”.
A filosofia morreu decrépita, caduca, esquecida, consumida pelas suas solitárias, amargas e incandescentes lágrimas...

... fez-se novo silêncio.

Das cinzas, brotou nova semente. Essa pequena centelha florescerá quando os homens estiverem dispostos a matar sua covardia frente ao mistério do mundo, quando renunciarem a letra morta para falar da vida e, assim, pulsar as potências escondidas, desbravar a escuridão.

Ó filhos da potestade do saber, amantes de Sofia, contemplai a luz que surge no horizonte e não temei o que ela revela, eis que testemunharemos o cumprimento da profecia da razão: o novo alvorecer do mistério.

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