No primeiro ano de filosofia, alguns dos meus colegas veteranos e alguns dos professores me apresentaram o que pensavam ser o cerne da atividade filosófica: a leitura estrutural dos textos escritos pelos grandes filósofos. Tratava-se de uma tarefa cansativa, mas, surpreendentemente, reveladora: desde cedo, eu e meus colegas calouros ficamos cientes de quanto nossas habilidades de leitura e escrita estavam aquém do grau exigido para um boa compreensão e reconstrução dos argumentos dos filósofos.
Com o passar do tempo, principalmente no meu caso, convenci-me de que a filosofia se restringia ao bom entendimento e à rigorosa formulação de argumentos. Bem, não preciso prolongar tanto essa descrição para dizer que, hoje, não estou tão convencido disso.
A filosofia que aprendo é uma filosofia que propõe um diálogo constante com a história da filosofia. Devo deixar claro que estudar a história da filosofia, neste caso, não significa ler manuais de filosofia. Em geral, a comunidade acadêmica não desaprova certo uso desses manuais, mas só como ajuda secundária. Assim, entre ler os textos dos filósofos e ler manuais de filosofia, digamos que a academia prefira a leitura dos textos dos filósofos. Nesse contexto, filosofar dialogando com a história da filosofia significa que todas as leituras que fiz, faço e farei desses textos visam um diálogo que devo fazer com eles agora ou num futuro mais ou menos distante.
A questão é se a filosofia precisa fazer esse diálogo com a sua história para ser ela mesma, ou, caso for preciso, se é imprescindível a leitura dos textos filosóficos. Eu tenho dúvidas sobre essas questões. Penso que, se alguém quisesse, poderia fazer filosofia mesmo que nunca tivesse lido Kant, por exemplo. Filosofar, no limite, exige apenas a capacidade de pensar e de vivenciar. Pensar, porque a filosofia é uma atividade intelectual, e vivenciar, porque o pensamento por ela produzido é a respeito de algo concreto, de algum modo parte da experiência humana.
Uma pessoa que pensa e que vivencie o que comumente denominamos “experiências da vida humana”, pode fazer filosofia. No entanto, ela certamente enfrentará dificuldades. A primeira é ver-se isolada caso não busque, ao menos, dialogar com outras pessoas; e a segunda é, no caso de tentar esse diálogo, não conseguir estabelecer com o outro um vocabulário comum e, no pior dos casos, nem um mútuo entendimento.
Fora essas dificuldades, as pessoas que se aventuram a fazer filosofia sem se dedicar, em algum grau, à leitura dos textos filosóficos também correm o risco de pensar o que já tinha sido pensado e cair no vexame de atribuir para si uma descoberta que, a rigor, já foi feita. Contudo, mesmo esse risco é difícil de ser avaliado, pois, para alguns pensadores, como Deleuze, cada filósofo tem seu próprio “plano de imanência”, de modo que, pensar exatamente como outra pessoa é apenas uma remota possibilidade.
Sou mais otimista neste ponto. A experiência que tantas vezes repito de compreender e ser compreendido me leva a pensar que as pessoas podem entender o pensamento umas das outras e, se empreenderem os esforços necessários, podem mesmo reconstituir esse pensamento. Se isso acontece no campo da comunicação, por que não poderia acontecer de pessoas, em diferentes épocas e lugares, compartilharem as mesmas premissas e chegarem às mesmas conclusões?
Nesse contexto, penso que a história da filosofia, expressa na leitura dos textos dos filósofos, é um elemento de erudição ou, no máximo, um auxílio na constituição de um vocabulário comum ou de referências conceituais comuns. Ela é imprescindível? Não acho isso. Penso que ela é uma facilitadora.
Excelente texto, Matheus!.
ResponderExcluirMe recorda de uma frase do Balthazar Fernandes no livro 'Conversas com Filósofos Brasileiros', do Marcos Nobre. Segundo ele: "filosofia sem história da filosofia é cega, e a história da filosofia sem filosofia, burra."