A filosofia que me é ensinada é uma filosofia comprometida com os textos e com seus respectivos autores. Aprendo a analisar argumentos - identificá-los e reconstruí-los - e, de certo modo, reaprendo a ler e a escrever para melhor cumprir esse ofício. Não preciso ter um conhecimento muito extenso de história da filosofia para perceber que essa atividade está muito aquém do que significa filosofar, mas, no instante em que tenho essa percepção, vem-me também a pergunta: o que é a filosofia, para que de sua definição eu extraia os critérios para acusar o que aprendo como não sendo filosofia?
Não tenho resposta consistente para essa pergunta, quem dirá correta. Penso que essa minha indisposição ou, melhor, inabilidade em dar resposta a essa pergunta, tão fundamental a um estudante de filosofia, é o preço que a minha geração paga por uma dívida contraída em algum momento, por algum pensador. Não arrisco apontar o autor da dívida, mas é inegável que ela tenha sido contraída. Que dívida seria essa? Sentir culpa por pensar. Penso que isso é apenas um sintoma, cuja causa é uma exagerada associação entre o exercício filosófico e o conhecimento da história da filosofia. Toda ideia, conceito, noção, termo, e outros sinônimos a essas coisas, está de tal modo presa aos seus autores que, se desejássemos discutir o amor, não poderíamos fazê-lo começando por uma definição nossa. Não, absolutamente não. Necessariamente, precisaríamos discutir essa noção pela boca de Platão, de Aristóteles, de Agostinho, de Pascal, de Nietzshe, ou de qualquer outro filósofo, tendo ainda o cuidado de diferenciar "amor segundo Platão", "amor segundo Agostinho", "em Aristóteles, o termo é filo, diferente de Agostinho, cujo termo é caritas".
Essas distinções e cuidados são, de fato, relevantes, pois quem se aventuraria em dizer que Aristóteles e Galileu pensaram uma mesma coisa pelo termo movimento? Mas, como já escrevi em "Filosofia precisa de sua história?", penso que essas especificações que o estudo da história da filosofia permite são facilitadoras (e acrescentaria enriquecedoras) do exercício filosófico, mas não são, absolutamente, condições de acontecimento desse exercício. Caso fossem, penso que teríamos que arcar com as seguintes consequências: que toda ideia é propriedade de quem a pensou e que toda ideia só pode ser compreendida se estiver associada ao seu pensador e proprietário.
Quanto à segunda consequência, no fundo, penso que estaríamos dizendo que o autor e suas qualidades físicas, psicológicas, culturais e intelectuais são condições determinantes de suas ideias, e que as ideias, por sua vez, não podem ser entendidas senão pela consideração dessas condições. À princípio, nada de estranho. Mas, não sei se fui claro o bastante. O que pretendo dizer é que: as ideias passam a ser acontecimentos únicos e personalizados. Se quisermos saber o que é o amor, não discutiremos o amor com base numa vivência compartilhada pelos homens, mas o saber que teremos do amor será baseado no que cada "grande filósofo" disse e pensou sobre o amor. O amor não é uma parte da vivência humana, ele é o "amor segundo Platão", "segundo Aristóteles" e, assim, nessa sequência de personagens moribundos ou já falecidos.
Diferente disso, o caso de Tomás de Aquino oferece, para estudantes como eu, algum alento e esperança. No tempo dele, a filosofia ainda operava com alguma pretensão de alcançar a verdade e, assim, de erigir um saber ao alcance de qualquer pessoa que se pusesse a estudar e a pensar. A verdade, cabe dizer, tinha dono: Deus; mas, ao menos, em troca de concessão tão honrosa, as pessoas podiam todas pensar com base em suas vivências e terem suas conclusões consideradas relevantes para o debate filosófico. As vivências eram partilháveis e tinham algum estatuto de validade - ao que me parece, um estatuto bem melhor do que aquele de que gozam, hoje.
Hoje, eu e alguns colegas sentimos culpa de pensar. Afinal, quem sou eu comparado a Descartes, Aristóteles ou Hume? Kant, então? Jamais! Sou apenas um estudante de graduação em filosofia, não sei nada do mundo, nada da vida, nada de nada. Se eu pensar, serei atrevido.
Como vejo a filosofia em meu tempo? Sinceramente? Custa-me muito esforço encontrar qualquer coisa que tenha alguma semelhança com isso. Minha ignorância é culpada disso? Tomara que sim, pois seria uma péssima experiência dar-me conta, ao final de minha "busca pela sabedoria", que todos, na minha formação, enganaram-me e fizeram-me andar em círculos, para não colher qualquer fruto das desgastantes horas de leitura e de reflexão.
Coisas a se pensar sem culpa.
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