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Mistério

O mistério tornou-se, para mim, um tema de pensamento, quando li, pela primeira vez, o livro de Jacques Maritain chamado Sete lições sobre o ser. Nesse livro, Maritain tem como objetivo mostrar a atualidade do pensamento tomista e, para tanto, já nos primeiros capítulos, ele apresenta a distinção entre problema e mistério. Se bem compreendi, essas noções são dimensões de uma mesma realidade: o problema é a parte a ser solucionada e o mistério a parte a ser aprofundada. Maritain evoca várias imagens para esclarecer essas coisas. O problema é como o novelo de lã a ser desembaraçado, por isso algo a ser resolvido. O mistério é como fonte de água a ser continuamente consumida - bebemos sempre, mas, não importa o quanto bebemos, sempre há mais*.
Quando li esse livro de Maritain, também li O que é filosofia? de Deleuze e de Guattari. Não sei se estou fazendo grande confusão ao misturar a reflexão desses autores, mas quando li Deleuze descrevendo os planos de imanência, suspeitei que, no fundo, a inesgotável profundidade desse plano remetia, mesmo que vagamente, à noção de mistério.
O mistério não é um enigma, nem pergunta, ou problema a ser resolvido. Todavia, ele é algo em que o ser humano mergulha por sua imaginação ou é algo que, simplesmente, é contemplado. Ele é como um horizonte. Não as montanhas, nem o sol, mas aquilo que eles escondem. Pelo mistério, o homem caminharia rumo ao horizonte, não para tocar o sol ou as montanhas, mas para contemplar aquilo que eles impediam de ser visto.
Penso que o mistério pode estar ligado à ignorância do homem. Enquanto desconhecido, o mistério é algo a ser tateado, experimentado, peguntado, testado, mas dificilmente contemplado. Enquanto algo a ser conhecido, o mistério é um espaço a ser ocupado, um abismo a ser saltado, uma aventura, um lançamento aparentemente cego rumo ao aparente nada e, nessas coisas, consiste a sua contemplação. Isso é estranho. Quando dizemos que contemplamos alguma coisa, queremos dizer que temos presente aos olhos a completude dessa coisa. Mas, o que eu descrevi é a ausência dessa presença total ao olhar.
Mas a questão que proponho é: no que se refere ao mistério da vida, do mundo, da realidade, temo-no presente a todo instante e, no entanto, também ele está, de algum modo, ausente. Isso porque nós lhe apreendemos esta parte que agora contemplamos, mas perdemos todo resto, o que passou e o que ainda pode vir.
Por isso, penso que o aparente escuro do mistério, com certa regularidade e em proporções diminutas, faz-se iluminada a nós para, depois, sumir novamente. A que se deve esses súbitos clarões? Não arrisco ainda ofercer a causa, mas tenho um palpite. Suponho nossa capacidade de pensar como um farol a continuamente iluminar o mistério do mundo. Mas, sei que poderia também supor que é o mistério que é claro, como o via Platão, e que a escuridão se deve à ignorância do homem, que anda de olhos fechados e que, de vez em quando, abre seus olhos, ou os abre muito pouco, de modo a deixar entrar só um pouquinho de luz.
Essas especulações de minha parte são ainda muito primárias e imaturas, mas penso que há nelas algo de instigador - pelo menos para mim. Pode ser que, daqui a alguns anos, eu considere essa discussão absolutamente tosca, mas, também, pode ser que eu amadureça esses insipientes pensamentos e, enfim, que eu lhes descubra uma consistência e claridade maior das que, agora, suponho.
Coisas a se pensar sem culpa.
* Essa imagem não é, exatamente, a que Maritain usa. Usei-a por uma questão de praticidade - pois não dispunha do livro no momento em que escrevia - e, também, por uma questão didática. Espero que tenha sido uma escolha feliz; se não, que os leitores de Maritain me corrijam.

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