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Quando assistir televisão é um vício

A televisão e os seus conteúdos são ficções. Dizem que eles servem de entretenimento, mas, para uma alma carente, acabam por ser um entorpecente. Cativam dessa pessoa o tempo e as forças, esgotando-os enquanto o espectador se mantém sentado e atento a uma vida virtual. Aquele que assiste televisão por muito tempo, deixa de viver para contemplar vidas fictícias alheias, gasta suas forças com a preguiça, rende-se irrefletidamente ao discurso televisivo.

É fato que, assistindo algo, posiciona-se como espectador. Olha, nota os detalhes, fica à disposição de acolher algum bem ou alguma verdade, recebe discursos e imagens, seguindo o ritmo ditado pela transmissão. Isso toma tempo, mas, principalmente, a vida. Sentado com os olhos atentos ao que aparece na tela. abre mão de agir, desbravar a realidade e, como diz São Paulo, combater o bom combate. Nas atrações da televisão está a tentativa de imitar a vida, porém oferecendo o conforto de não expor seus expectadores aos riscos de ferir-se, de enganar-se ou de ser derrotado. A vida da televisão está perto o bastante para enganar, porém longe o suficiente para não satisfazer. Pois, não é real. Ela é pensada por alguém, mutilada pelos preconceitos e pelos interesses, e apresentada com vestes e ornamentos que seduzem, apenas para emboscar suas vítimas, cativando-lhes inertes diante de si, escondendo delas seu segredo, inoculando-lhes o veneno da sua mentira enquanto consome seus corpos e suas mentes. 

Quando alguém escapa, por alguma razão primitiva - como comer ou dormir -, dá-se um pequeno lampejo de lucidez. Confrontando com a luz da vida, a pessoa descobre o vazio daquelas horas que gastou diante da T.V. Neste momento, ela é tomada pela tristeza, faz promessas a si mesma de mudar, chega a visualizar um cenário de felicidade, imagina as festas, as viagens, as risadas e as amizades, alguma paixão ou alguma realização profissional. Contudo, mal passam aqueles instantes de consciência, o brilho daquele sonho encontra seu ocaso na aparição da primeira imagem. Quem cogitaria a possibilidade de a luz lançar qualquer homem nas trevas? Temos aqui um exemplo concreto. 

Certamente, o quadro descrito acima não significa dizer que a televisão é por si mesma má ou viciosa. Ela existe para a ficção e isso é fato. Sua imitação da vida pode ajudar os homens a viver, de fato. O problema é quando alguém, sem mais reconhecer o bem da realidade, vê o mundo como um lugar frustrante e ameaçador e isola-se e trancafia-se dentro dos limites da tela televisiva. Dessa maneira a televisão se torna um vício. Quando as ações se repetem impulsivamente, uma seguida da outra, apesar de quem as realiza reputá-las como más, constitui-se um ciclo vicioso. 

Como interrompê-lo? Se a pessoa sabe que é mau, não se trata de um defeito do intelecto. A questão é que  a pessoa quer, mas não consegue agir segundo sua vontade. Há de considerar ainda a falha da memória. Acontece que, depois de repetir a mesma ação má, a pessoa sofre e, alguns dizem, muito. Mas, mesmo tendo sofrido, aquele que está preso ao ciclo vicioso fica como entorpecido enquanto é tentado e obscurece-se-lhe o intelecto, de modo que não pensa senão por obcecação. Não se recorda senão dos breves instantes de satisfação. Com a inteligência tão enfraquecida, a vontade fica refém, sem seu aliado. 

Sair desta partida e chegada, de e para o mesmo lugar, não está em nenhuma força centrífuga. Está no fortalecimento da vontade pela negação. Há quem diga que negar a vontade é enfraquecê-la e é se tornar um escravo, alienado do que deseja realmente. Mas isso é pressupor que as paixões são o que há de mais próprio do homem. Somos mais nós mesmos quando fazemos o que desejamos? Se isso é verdade, cumpre dizer que o ser humano é naturalmente um escravo, fadado a terminar os seus dias dominado pelo movimento das suas tripas. Todavia, esta não é nossa cina. Do contrário, a realidade nos revela que nós somos nós mesmo quando fazemos o que decidimos fazer e isso é um salto qualitativo bem grande. Decidir envolve a consideração do que desejamos certamente, mas isso passa também pelo crivo dos valores, das leis, das razões que aceitamos e que também fazem parte de nós. Incontáveis vezes abrimos mão de algo que desejamos para fazer o que consideramos certo e nem por isso julgamos que aquela ação tem pouco de nós mesmos. Apesar dos filósofos descordarem sobre o que é certo ou errado, nenhum defendeu que o homem devesse deixar de pensar sua ação e agir de acordo com esse pensamento. 

Entendido isso, escapar do vício de ver televisão, assim como de qualquer outro vício, significa atacar a fragilidade da vontade, fortalecendo-a, para que ela não seja concretizada irrefletidamente (o que significaria desprezar nossa inteligência, parte importantíssima de nós mesmos), mas o seja pela consideração dos desejos à luz dos nossos valores, leis e razões. Mas, para que isso aconteça, é preciso deixar espaço para que o intelecto atue. Sob o bombardeamento dos comerciais, novelas, séries e filmes, dificilmente isso será possível. Logo, a alternativa é abster-se de assisti-los, fazendo um tipo de jejum. Trata-se de desapegar-se da televisão para aprender a possuí-la. Renunciando, a pessoa torna a exercer poder sobre si mesma. Era como se estivesse raptada e acorrentada por vários rostos e vozes virtuais e, num acesso de inconformidade, desembainha agora o controle e fere seus algozes ao apertar o botão de desligar. Apagando aqueles que a oprimiam, escapa do cativeiro e lança-se em direção de novas terras, onde possa tornar a cultivar sua vida e colher as realizações. 

Tomara que, emancipada, redescubra a beleza do que é real. Também, espera-se que não se esqueça dos tempos de servidão do desejo. Em posse de si, tem a chance de seguir nova rota. Mas isso requerirá a persistência de viver por decisões, a despeito de todos os desafios que surgirem. Como diziam os antigos, melhor morrer como homem livre do que viver como escravo. 

Coisas a se pensar sem culpa.
   

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